Depoimento de Andrea Batista da Silva*, exclusivo para o #blogVencerLimites.
Fui para o caminho da enfermagem porque minha mãe trabalhava na limpeza do banheiro público feminino da praia do Gonzaguinha, em São Vicente (SP). Ela me levava nos finais de semana. Havia lá um posto de salvamento do Corpo de Bombeiros e comecei a ver o pessoal aferindo pressão, atendendo emergências e pessoas quase afogadas. Então, comecei a me interessar.
Minha mãe disse: "por que você não faz enfermagem?". E, assim, em 1992, quando eu tinha 17 anos, ela me levou para fazer a prova de processo seletivo da Escola de Auxiliares de Enfermagem do Hospital Ana Costa, em Santos. Me levou no dia da inscrição, no dia da prova e na matrícula, para ensinar como pegar o ônibus e em qual ponto descer. Eu não sabia andar sem ela, sempre estávamos juntas, mas fui sozinha até terminar o curso e começar a trabalhar. Cortei o cordão.
Fiz faculdade de Enfermagem, desisti três vezes até terminar, em 2008. Também fiz pós-graduação em UTI Pediátrica e Neonatal no mesmo ano. Sonho em dar continuidade ao mestrado e, quem sabe, um dia ao doutorado.
Descobri que sou autista, que tenho a chamada Síndrome de Asperger - ou Autismo Grau 1 - aos 41 anos, pela falta de habilidade social. Pontuada pela minha chefe na época - foi a melhor coisa - procurei uma neuropsicológica para tentar entender essa falta de habilidade social. Isso me ajudou muito. Cheguei ao psiquiatra e ao diagnóstico.
Assim como é para os pais recém-nascidos no autismo, o diagnóstico cai como uma bomba, mas, ao mesmo tempo, é libertador, pois tudo passa a fazer sentido a partir daquele momento, você entende por que tinha dificuldades na arte de fazer e manter os amigos, por que não conseguia ter um namorado e por que ficar em uma festa por muito tempo ou entrar no meio da multidão é igual dar kriptonita para o super-homem.
Depois do diagnóstico e do laudo, você descobre que é uma pessoa com deficiência. E começam os problemas no mercado de trabalho, a sigla 'PCD' parece te marcar, ninguém te vê mais como profissional, você é morto profissionalmente e afirmo isso por experiência própria na área de saúde.
Já fui a entrevista de emprego na qual tive a impressão de ser chamada apenas por curiosidade do entrevistador. "Existe enfermeira autista?!".
Passo em provas com boas notas, mas na entrevista, no olho no olho, não respondo de forma objetiva o que é perguntado e tenho uma limitação de expressões faciais. Se estou triste ou alegre, faço mesma cara, e isso passa ao entrevistador uma indiferença, algo como não gostar de alguém.
Há profissionais - acredito que seja por falta de conhecimento e preparo para atender a pessoa com deficiência - que não consideram o autista uma pessoa como deficiência. "Não estou vendo sua deficiência. Qual é o CID mesmo?" ou "Você não pode ser enfermeira. Como você vai liderar sua equipe?".
Nessas horas, conto até dez e digo. "Então, já fui coordenadora de UTI Pediátrica, já fui enfermeira de UTI Neonatal. E existe a Lei Berenice Pianna". Isso, por exemplo, acabou com os argumentos para não me incluir na vaga para pessoas com deficiência em um hospital universitário de São Paulo, mas eles não enxergaram minhas habilidades e nem minha competência profissional. Já passei pelo estresse de ser mal avaliada porque não havia o chamado 'emprego apoiado' em outro hospital estadual de grande porte em SP.
Trabalho como auxiliar de enfermagem em um hospital estadual em Santos. Vou completar 25 anos. Fiquei 20 anos na UTI Pediátrica, três anos na UTI Neonatal e dois anos na endoscopia, até que surgiu um convite para atuar na educação permanente, função que exerço atualmente. Nesse hospital, onde tenho muito orgulho de trabalhar, nunca fizeram avaliações centralizadas no meu autismo, sempre avaliaram meu potencial de trabalho, minhas e habilidades, e há um esforço real para minha inclusão.
Trabalhei em outras instituições, em pronto-socorro infantil, UTI Neonatal, tudo antes do diagnóstico, sem problemas ou avaliações desabonadoras.
Se o autista é enfermeiro, médico ou tem qualquer profissão que ele queira ter, ele tem sim capacidade para isso.
Hoje, relembrando aquela menina recém-nascida que não chorava para mamar (relato de minha mãe), é importante os pais saberem que existem sinais de autismo nos bebês, na criança que não passou de ano na primeira vez que foi para a escola, desenhava muito bem, mas não conseguia amarrar os sapatos, girava a roda da bicicleta do pai por horas porque isso a acalmava, não chorava para tomar injeção.
A adolescente que tinha um mundo próprio dentro da cabeça e copiava as amigas para parecer normal, mas enfrentava dificuldades por não ter um namorado, não sabia paquerar e nem entender o que era paquera. Até hoje não entendo. Aliás, seria mais fácil se o ser humano tivesse a dança do acasalamento.
Tenho um pensamento agitado, um mundo de informações e ideias, mesmo dormindo. O pensamento autista faz barulho o tempo todo. Existem meninas autistas que crescem e viram mulheres com diversas características diferentes.
Agradeço à minha mãe por me ajudar muito a evoluir, a meus familiares, ao meu namorado Marcelo, que precisa me pedir um abraço e me ama mesmo assim, à minha chefe Márcia por entender que autistas devem ser ouvidos e incluídos.
Continuo na luta, sabendo que inclusão e autismo cabem em todo lugar.
*Andrea Batista da Silva, de 46 anos, é auxiliar de enfermagem e enfermeira formada pela Universidade Paulista (UNIP), especialista em enfermagem em UTI Pediátrica e Neonatal pelo Centro Universitário Lusíada (UNILUS).
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