3 em cada 10 mulheres mortas por violência já tinham sido agredidas

Dado consta em estudo inédito realizado pelo Ministério da Saúde com base em registros de óbitos e atendimento na rede pública entre 2011 e 2016

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Por Ligia Formenti
4 min de leitura

Três entre cada dez mulheres que morreram no Brasil por causas ligadas à violência já eram agredidas frequentemente, revela estudo inédito do Ministério da Saúde obtido pelo Estado. O levantamento foi feito com base no cruzamento entre registros de óbitos e atendimentos na rede pública de 2011 a 2016.

“Vimos que essas mulheres já tinham recorrido aos serviços de saúde, apresentando ferimentos de agressões”, diz a diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis da pasta, Maria de Fátima Marinho Souza, que coordenou o trabalho.

Proteção. Ex-investigadora particular tem hoje medida protetiva contra ex-companheiro Foto: Ernesto Rodrigues/Estadão

Para ela, o resultado deixa claro o caráter crônico e perverso dessa vivência e a necessidade de se reforçar a rede de assistência. “Se medidas de proteção tivessem sido adotadas, talvez boa parte desses óbitos pudesse ter sido evitada.”

A consequência da violência frequente fica evidente na pesquisa. O trabalho comparou o risco de morte por causas violentas entre mulheres que haviam procurado em algum momento serviços de saúde por causa de agressões e entre aquelas que não tinham histórico. As diferenças foram relevantes. No caso de adolescentes, por exemplo, o risco de morrer por suicídio ou homicídio foi 90 vezes maior entre as adolescentes com notificação de violência.

Os dados representam histórias como a de Jerusa, de 37 anos, identificada pelo ministério. Em junho de 2015, ela procurou o hospital público com lesões após ser espancada por seu companheiro, João. O registro feito na época já indicava que as violências ocorriam repetidamente. Mas após o atendimento e a notificação, nada mudou. 

Jerusa continuou vivendo com o companheiro, que permaneceu impune. Oito meses depois, foi morta pelo marido.

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Os números gerais também impressionam. No período analisado, morreram no Brasil, por dia, três mulheres que já haviam dado entrada em hospitais, unidades de pronto atendimento (Upas) ou ambulatórios públicos em busca de tratamento para hematomas, fraturas e outros tipos de lesões associados à violência. “Os dados dão uma dimensão, mas certamente são ainda maiores. Aqui não contamos, por exemplo, os atendimentos em serviços particulares”, disse Maria de Fátima.

Estudos

Os dados de 6.393 mortes reunidos pelo ministério reforçam pesquisas anteriores sobre o problema. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Datafolha de 2016, por exemplo, mostrava que o País tinha 4,4 milhões de mulheres que já haviam sido vítimas de agressão física. E desse total, 29% relataram que tinham sofrido algum tipo de violência nos 12 meses anteriores.

Maria de Fátima lamenta não só a pouca eficácia do aparato para ajudar vítimas de violência. Ela observa também que muitas das mortes dessas mulheres permanecem impunes, reforçando o ciclo de violência. 

Entre os casos reunidos pelo ministério também está o de Aline, de 34 anos, moradora de Pariquera-Açu (SP). Em setembro de 2015, foi atendida no serviço de saúde depois de ser agredida pelo companheiro. Aline se separou e se casou novamente. Cinco meses depois da primeira agressão, o casal foi atingido por uma moto. Aline morreu e o autor nunca foi encontrado.

Para Fátima, a impunidade acaba reforçando a violência. No caso das mulheres, ela ocorre em todas as faixas etárias. O estudo conduzido pelo Ministério da Saúde mostra que 294 crianças até 9 anos que sofriam por agressões crônica morreram entre 2011 e 2016 de causas externas. Entre idosas, com 60 anos ou mais, foram 752.

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‘O corpo já sarou, mas a alma ainda falta muito’

Foi por acaso que Edna Fernandes Silva viu o Centro Especializado de Atendimento à Mulher de Brasília, encravado numa estação de metrô. Com histórico de violência cometida pelo então companheiro Miguel por mais de mais de dez anos, resolveu entrar. “Foi num ato de desespero. Que bom que foi esse”, conta.

O episódio foi há quase dois anos. De lá para cá, Edna passou a ir a sessões de terapia em grupo e fazer tratamento com psicóloga e psiquiatra, além de ter assistência jurídica. “Dizem que aos poucos minha aparência está melhorando. Era outra antes do Miguel. Pesava 11 quilos a mais. Não emagreci por amor. Foi por ódio, sofrimento.” 

Os relatos de agressão são inúmeros. Violência física, emocional, sexual. “O corpo já sarou. Mas a alma ainda falta muito”, resume a hoje chacareira. Antes de começar a viver com Miguel, era investigadora particular.

“Tinha boa clientela. Era superconfiante, bonita, corajosa. Cuidava de mim. Se me perguntar: por que você se permitiu ficar assim? Posso até ter pistas, mas ainda não sei.”

Ela conta que, pouco tempo antes de iniciar a relação com Miguel, o irmão teve uma morte violenta. “Fiquei abalada. Na época conheci o caseiro. Mas poderia ter sido outro. Achava que seria cuidada, mas fui violentada.”

As agressões vieram aos poucos. Primeiro, emocionais. Edna soube dos casos extraconjugais do caseiro. Tentou se rebelar, mas acabou convivendo com as traições. “Era um misto de medo, sensação de impotência. Uma vez, ao falar mal de uma amante, ele começou a me bater na rua. Fingi que desmaiei para ele parar. Quando ele se deu conta que eu estava bem, tentou me agarrar novamente. Para me livrar, tirei a blusa que ele agarrava e fugi. E sabe o que é pior? No dia seguinte ele voltou e fingiu que nada tinha acontecido.”

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Logo depois de conhecer Miguel, Edna abandonou as investigações particulares. Quando a violência sexual aumentou, pensou no suicídio. “Pensei duas vezes, porque tenho duas cachorrinhas.”

Embora mais segura, o fantasma do ex-marido ainda a atormenta. Separada há dois anos, eles dividiram a chácara onde viviam. “Tenho medida protetiva, ele não pode me visitar. Mas colocou para morar no terreno ao meu lado um homem que também me ameaça, conta tudo para ele. É um círculo que é difícil romper.” 

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