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63 dias entre rios, igarapés e vestígios

Equipe desafiou a floresta, investigou boatos e viu sinais deixados por índios não-contactados

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Por Redação
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Só 12 dias depois de sair de Tabatinga é que o barco da expedição, Kukahã, conseguiu contornar a Terra Indígena Vale do Javari, deixando para trás os rios Solimões e Jutaí. O longo trajeto até a boca do Rio Boia, um afluente menor, de água preta, serviu para mostrar que o tempo na Amazônia tem outra dimensão.Horas, minutos e segundos saem de cena. Dias, semanas e meses aparecem como referencial. O tempo se arrasta para quem não está acostumado e enclausurado em um barco de 30 m² com 13 pessoas. A paisagem homogênea - marrom na água, verde na margem, azul no céu - pouco ajuda.No trajeto, enquanto a primeira entrada se aproximava, o indigenista Rieli Franciscato distribuía facões e equipamentos de sobrevivência. Os rifles de caça foram revisados. A ansiedade aumentava.Na véspera, Franciscato fez a divisão do "rancho" que seria levado até o acampamento-base na mata. Foram embarcados em dois barcos de alumínio uma motosserra e um gerador de luz, farinha, arroz, sardinhas, pacotes de bolacha de água e sal e suco artificial. Soro antiofídico e testes de malária.Ao meio-dia do dia 12 de dezembro, nove membros da expedição partiram em direção à clareira supostamente feita por índios não-contactados. Igarapé adentro, com vento no rosto, a palmeira buriti se espraiava sobre a água como um guarda-chuva verde. A bromélia vermelha contrastava, a 20 metros de altura. O sol explodia no céu azul. Ao cair da tarde, Franciscato ordenou que o tilintar dos facões se multiplicassem na mata. A floresta na beira abria espaço para o acampamento. Após a noite sob chuva torrencial, o igarapé estava cada vez mais bloqueado por árvores tombadas. Foram seis horas de acelera e para até chegar ao ponto de partida da entrada na mata, ainda a 15 quilômetros da clareira. Era o começo de uma forte caminhada em terreno acidentado. Nesse pedaço, a Amazônia é de morros, com subidas escorregadias. E a proteína necessária veio da carne de macaco-aranha, abatido pelo mateiro e índio ticuna Misael.Quando a clareira estava próxima, a menos de 5 quilômetros, o clima de decepção tomou conta. Não havia vestígios indígenas. Franciscato ficou 15 minutos em silêncio. Acendeu um longo cigarro enrolado com folha de caderno. "É, achei que a gente já estaria tomando chicha (bebida de frutas fermentadas) com os "parentes"", desabafou, brincando.A clareira não passava de uma área em que árvores foram derrubadas por uma tempestade. "Bora voltar então", ordenou Franciscato. Ainda faltavam duas entradas para cumprir a missão.Segunda entrada. Dia 25 de dezembro de 2009,parado na beira do Rio Boia, rifle nas costas e suando em bicas, o mateiro e índio kanamari Wilson tirou um galho do bolso e mostrou para a equipe. "Ó a quebrada! Eu com medo de parente bravo!" Franciscato, mesmo avesso à "bagunça" das festas de fim de ano, não resistiu. "É nosso presente de Natal." O galho que Wilson encontrou quebrado é o vestígio que a Frente procurava, 400 quilômetros ao sul da clareira. Após o desalento da primeira fase, era o grande sinal de índios não-contactados da expedição. A nova incursão começara no dia 21 de dezembro para confirmar relatos de ribeirinhos: a mulher de um madeireiro e a filha de outro teriam sido mortas por "índios bravos" nos últimos cinco anos.Galhos quebrados, porém, não eram suficientes para afirmar que índios não-contactados ocupam a área. E assim se desenhou a missão mais longa da expedição. Foram sete dias no barco de alumínio, a motosserra gritava nos igarapés para poder abrir caminho. Mas não avançava cinco quilômetros por dia.Quando finalmente a Frente chegou ao ponto de início da caminhada, após topar com picadas de cobras e escorpiões, já era 30 de dezembro, quase 2010. O trajeto a pé, de 50 quilômetros em linha reta, passou por áreas encharcadas e travessias perigosas de igarapés. Mas os vestígios desapareceram. "Fomos longe mesmo", suspirava o mateiro e índio marubo Tapumpa, após retornar ao acampamento-base no dia 6 de janeiro. "Não encontramos nada", dizia um cansado Franciscato.O caso dos assassinatos restou inconclusivo. Ficou claro, no entanto, que índios não-contactados de um grupo conhecido da Terra Indígena Vale do Javari estão fora da área demarcada, desprotegidos, e requerem monitoramento, culpa do avanço do garimpo na região.Rapto de mulher. Dia 19 de janeiro deste ano, Franciscato decidiu investigar o suposto rapto de uma mulher da etnia katukina no Rio Biá, afluente do Rio Jutaí. Para sustentar a tese, o indigenista entrevistou katukinas de três aldeias - Boca do Biá, Janela e Bacuri. Foram duas as palavras-chave: quebrada e varadouro. O índio katukina Carnaval disse que sabia onde estavam os vestígios e acompanhou a equipe na entrada, por cinco dias.No entanto, ao final do trajeto de 30 quilômetros a pé, ficou claro que não passava de invenção. Os katukinas temem o "índio bravo" e uma aparição justificaria disputas por mulheres e por território, sem gerar conflito imediato entre os membros da etnia. Ao final da expedição, índios das aldeias Janela e Bacuri se divertiram ao saber que a história tinha ultrapassado os limites das aldeias e chegado a Manaus, Brasília e São Paulo. Hora da expedição retornar a Tabatinga, com a certeza do dever cumprido: checar.

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