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701-U, a Transiberiana paulista

Por Vanessa Barbara
Atualização:

"Hoje eu consertei o zíper da minha blusa no 701-U", declara uma jovem passageira. "Espero encontrar meu grande amor nessa linha", afirma outro rapaz, sonhador. O trajeto coerente do 701-U, Jaçanã-Butantã USP, é até hoje um modelo de racionalidade no tráfego. Em seus 163 minutos de percurso, segundo informações oficiais da SPTrans, o coletivo passa pelas ermas ladeiras do Tucuruvi (assim como os 177H e P, que espantam galinhas pelo caminho), chega portentosamente às principais ruas de Santana, às nem tão principais assim, a uma certa viela chamada Perpétuo Jr. e vai além, sempre atrás de um Corsa, pela Avenida Tiradentes, Ipiranga, Consolação e Cardeal Arcoverde, onde é cercado de carros por todos os lados e acolhido em uma alegre e estanque quermesse local. (Segundo relatos, em certos trechos dá pra ver o mar.) Durante essa jornada, muitos passageiros optam por escutar música, papear ou falar ao celular. O fundo do ônibus se transforma em dormitório, onde os peregrinos encostam-se ao vidro e usam as blusas como travesseiro. Outros cochilam de boca aberta e há sempre uma moça que descasca o esmalte das unhas. De pé, os estudantes leem folhas de xerox, com canetas marca-texto presas na boca. Pensando nisso, e diante da evidente escassez de ocupações alternativas, elaboramos uma lista de atividades para exercer a bordo desse coletivo. 1) Massagem nos pés 2) Conhecer a vida, obra, curiosidades e preferências do cobrador, do motorista e de treze passageiros, aleatoriamente 3) Jogar forca no vidro (quando está chovendo) 4) Dormir, acordar, comer, mascar chiclete e voltar a dormir 5) Olhar o relógio de minuto em minuto, gritando na hora cheia 6) Inventar enigmas obrigatórios para passar pela catraca 7) Estalar todas as articulações do corpo 8) Planejar seu futuro em 815 pedaços de papel 9) Rasgar tudo e escrever um haikai 10) Abrir um pacote de bolachas recheadas e fazer amigos 11) Gritar "tarântula!", e depois, fingir que está dormindo 12) Cronometrar quanto tempo o ser humano consegue ficar completamente imóvel 13) Ficar próximo do controle do bilhete único para ver quanto crédito as pessoas têm no cartão, invejando os abastados e ridicularizando os depauperados 14) Olhar pra fora e perceber que estamos no meio do caminho Segundo fontes, a Prefeitura pretende transformar o 701-U num centro cultural e desportivo. Nele, a população nômade terá acesso a palestras, atividades lúdicas e cursos profissionalizantes. Ao passar pela catraca, será possível jogar tênis, ter uma animada aula de rumba, assistir ao curso prático "O que podemos aprender com os gansos?", realizar caminhadas e assistir na íntegra aos discursos de José Sarney.

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