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A caixa de dissonâncias

São Paulo se tornou uma cidade inquieta, estranha e interessante

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Por Redação
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São Paulo. Um Portugal inteiro. Toda a Grécia. Dois Rio de Janeiro. Nem a paz campestre do Alentejo. Muito menos a monumentalidade da Acrópole. Nada que arrombe as retinas: nem mar, nem montanhas, nem garotas de Ipanema. Cidade "áspera, intratável" como o cacto que um dia atravessou e interditou Recife nos versos de Manuel Bandeira? Esta é a maneira fácil, simplificadora de ver São Paulo. É verdade que a cidade é um superlativo de impasses, aumentativo de problemas, máquina de fazer doidos no trânsito. Mas esta é apenas uma forma de encará-la, sem perceber desvãos e sutilezas de sua desmesurada e intrigante volumetria. É deixar-se soterrar pelo disforme corpanzil, sem se dar conta das delícias de espírito de suas falanges multiculturais, que já foram fortificações intransigentes forçadas pelo tempo, por algum sofrimento e pela vertigem urbana a transigir, ainda que tantas vezes a contragosto. Definitivamente São Paulo não é uma cidade para flanar. Defeito grave. Há raras esplanadas. Corcovas e mais corcovas de ladeiras, de tirar o fôlego e esgotar coronárias. É um labirinto jesuítico. Feito sob medida para esconderijos. Uma sinuosa e indevassável geografia de achados e perdidos. Transformou-se num regaço de temporais. Incontroláveis. Incontornáveis. Mas o que a saturação corrompeu, o que o desespero secretou, o que a solidão das multidões destilou - tudo isso fez de São Paulo uma cidade inquieta, estranha e interessante. O cotidiano obliterado por dificuldades instilou altas doses de predação à luta pela vida, mas também deu aos paulistanos aquele tônus empreendedor espantoso, no melhor sentido, e devastador, no pior. Quem imagina que tudo isso azeda a vida engana-se. Ainda que os valores do trabalho perpassem quase tudo, contaminando juízos pessoais às vezes para além do razoável, subsiste a todas intempéries, a todos os massacres um notável e singular apreço pela convivência, expresso numa cálida hospitalidade, numa ironia que zomba do senso comum, num surpreendente e saudável gosto pelo esquisito, numa avidez de conhecimento que faz de São Paulo uma formidável caixa de dissonâncias do Brasil. Desse testemunho, como carioca da gema, dou fé.

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