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A dor de quem não teve a chance de viver o luto e enterrar seus mortos

Especialistas dizem que é mais difícil elaborar a perda quando não há corpo: ?É como se não tivesse ocorrido?

Por Adriana Carranca
Atualização:

As emoções oscilam entre esperança e desespero. Pode durar dias, meses, às vezes, anos. Uma busca que impede a aceitação da morte e o continuar da própria vida. Sobre os familiares das vítimas de desaparecidos em tragédias - como a do voo AF 447, que até agora teve somente dois corpos resgatados - pesa, além da dor da perda, a privação da despedida. Um ritual que permite a quem fica vivenciar o luto e aceitar a realidade. Nesses casos, a de que a pessoa não volta. "A sensação ainda é de que eles vão entrar por aquela porta", diz Theresa Amayo, oito anos após perder a filha, o neto e o genro no tsunami que atingiu a costa asiática em dezembro de 2005, deixando 300 mil mortos. A diplomata Lys Amayo, o filho, Gianluca, de 10 anos, e o marido, o italiano Antonio D?Avola, passavam férias na Tailândia. Com eles estava a filha Taís, única sobrevivente, que voltou sozinha para casa. Depois de enterrar a mãe e o irmão, identificados 13 dias após a tragédia, Taís voltou para a Tailândia como voluntária das equipes de resgate. Queria encontrar o pai. "Não sabíamos se ele estava numa ilha ou desmemoriado no meio da floresta. Passa tudo pela cabeça", diz Theresa, avó de Taís. "Se ele se fora, então, onde estavam seus restos mortais? Da minha filha, não vi o corpo. Não era possível. Então, vivi meu luto com muito sacrifício e muita dor, mas pior do que isso é você não enterrar os seus mortos." A busca de Taís terminou quatro meses mais tarde, quando ela reconheceu em fotos dos destroços o relógio e a aliança do pai - um exame de DNA atestou a morte dele e a família pôde realizar um enterro na Itália. "Com a cerimônia da despedida tem-se a realização da verdade e é possível, então, vivenciar o luto. Na falta do corpo, é como se o fato não tivesse ocorrido", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Luto da PUC-SP. "É uma angústia muito grande." A aposentada Laura Petit da Silva conhece o sentimento. Ela só enterrou um dos três irmãos desaparecidos na ditadura. Ainda assim, somente após 24 anos, quando foram encontrados os restos mortais da caçula, Maria Lúcia, morta em 1972, aos 22, na Guerrilha do Araguaia. Até hoje, ela é a única identificada entre os 60 desaparecidos. Os irmãos de Laura, Jaime e Lúcio, nunca foram encontrados. "Até a anistia, em 1979, minha mãe acreditou que voltariam. Depois, passou a colocar uma rosa ao lado de suas fotos no dia do aniversário deles, porque não havia túmulo para levar as flores", diz Laura, de 62 anos, mais da metade deles à espera de rever os irmãos. À família da comissária de bordo Michelle Rodrigues Leite restaram apenas alguns objetos pessoais dela identificados entre os destroços do Airbus da TAM, que saiu da pista e explodiu contra um prédio após a aterrissagem no Aeroporto de Congonhas, em 2007. Os corpos de 4 das 199 vítimas nunca foram identificados. No início, houve negação da morte, alimentada por um telefonema de Michelle ao namorado dizendo que não voaria no 3054. Daí até o fim dos resgates, foram 50 dias de espera em vão. A implosão do prédio foi a pá de cal sobre esperança da família de revê-la. "Enterramos as coisinhas dela mesmo. Foi uma forma de dar satisfação aos amigos, que ainda ligavam por notícias. Era um sofrimento", diz Mara, tia de Michelle. É PRECISO VIVER Num exemplo de superação, Theresa enxuga as lágrimas e fala aos familiares das vítimas do voo 447, da Air France: "Não se pode esmorecer, tem de ter fé. Diga a eles que o tempo vai ajudar e que estarei orando. A gente sente uma falta terrível, mas segue vivendo das coisas boas do passado e pelos que ainda estão com a gente, porque é preciso viver."

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