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A nossa rua

Por Vanessa Barbara
Atualização:

No Mandaqui, a gente comia tatu-bola, tomava banho de chuva e tinha medo da Ana Paula, que batia nas meninas só porque eram mais altas. A gente vestia todas as roupas do armário para brincar de Elefantinho Colorido e dava voltas no quarteirão de meias para comemorar uma vitória no futebol. A gente esnobava as crianças mais novas e falava mal da Cássia, que nunca fez nada de mau pra ninguém, desculpa aí, Cássia, você não é orelhuda - foi mal. A gente brigava feio a cada 15 dias, arrumava novos amigos na rua de baixo e jogava ovos no quintal dos outros, por represália. Na Rua 2, a gente estendia uma rede de vôlei no portão dos Pessoas e da Mariângela, e ficava jogando até escurecer ou a mãe de alguém chamar para tomar Nescau, causando constrangimento na vítima e duas semanas ininterruptas de troça. Quando passava carro, a gente saía correndo com uma vassoura para erguer a rede bem alto, senão a antena do veículo enroscava e todo mundo começava a gritar como se o universo fosse acabar ali mesmo, num vórtice laranja de cacos de vidro, bambolês e pitangas. Quando descia caminhão na rua, o Gustavo se arremessava no portão para desamarrar a rede, enquanto os outros se estendiam no asfalto para impedir a passagem do bólido automobilístico, mártires do vôlei mambembe numa rua pouco movimentada, em descida, que é para dificultar ainda mais o esporte tupiniquim. Nos dias de frio, ficávamos sentados na calçada enrolados num cobertor, discutindo coisas muito importantes. A gente roubava no truco, no taco e furtava luzinhas de Natal de desafetos. A gente idolatrava o Menelau, um cão que viveu cem anos e não latia nunca. A gente morria de medo da Selma: quando a bola caía no telhado do 136, o time se evaporava em dois segundos, mergulhava atrás dos arbustos, descia correndo o escadão, corria até Parelheiros e pensava que aquele era o momento mais perigoso de toda a nossa existência - a Selma saía no portão com a bola na mão, gritando ?eu sei que vocês estão aí?, enquanto a gente encomendava a alma ao Criador e rezava baixinho. A Selma era brava. Nas férias de julho, a gente brincava de escritório: o Bernardo era o chefe e a Paula, uma das secretárias. Furtávamos uma dezena de aparelhos velhos das nossas casas ou de antiquários de quinta categoria, tipo telefones quebrados, grampeadores industriais, fichários, cadeiras de rodinhas e, um dia, chegou um computador 386 no qual a gente fazia fichas cadastrais dos funcionários usando o Bloco de Notas. Às vezes, a gente derrubava o chefe e promovia todo mundo, ou rolava alguma briga com o pessoal do sindicato e uma turma de dissidentes abria concorrência na casa do lado. Hoje meu irmão tem uma mesa só dele no Banco do Brasil, sai de casa cedo para brincar de escritório e não chama ninguém.

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