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A obrigação de ser e parecer feliz o tempo inteiro

Ao mirar as ‘vidas perfeitas’ exibidas nas redes sociais, pessoas comuns se sentem frustradas, dizem especialistas

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Por Felipe Siqueira
Atualização:

O historiador e doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e colunista do Estado, Leandro Karnal, afirma que, no mundo moderno, existe uma obrigatoriedade de se alcançar a felicidade. “Até para conseguir emprego, eu tenho que ser feliz o tempo todo, intensamente.” 

Havia ansiosos já na era do gelo, afirma Leandro Karnal Foto: Felipe Rau/Estadão

Isso, segundo ele, fica muito evidente nas redes sociais. As pessoas miram-se nos posts de mais sucesso feitos na internet, sempre com situações invejáveis, muito humor e sem graves problemas. Aquele jeito de viver torna-se uma meta inalcançável e passam a buscar uma utopia. 

Psicanalista Maria Homem diz que desejo hoje é 'colonizado' Foto: Felipe Rau/Estadão

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A partir desse hábito, as pessoas comuns começam a fazer questionamentos internos, moldando seus gostos com coisas conquistadas por outros. “Por que a minha vida é monótona, repetitiva? Por que meus filhos não são, apesar de amados por mim, tão fascinantes quanto os que são fotografados no Instagram, por que não tenho as férias perfeitas ou o Natal perfeito?”, detalha Leandro Karnal. 

A psicanalista e professora doutora da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap) Maria Homem explica que a vontade de alcançar o bem-estar a partir das coisas exibidas pelos outros surge a partir de uma lógica capitalista e consumista. “O modo de vida (levado hoje em dia) é à base do desejo, mas um desejo (de coisas) do outro. Você é levado a querer alguma coisa que alguém mostra que é muito bom”, diz a professora.

De acordo com ela, é preciso cuidado para que não exista um desejo colonizado. “A gente se transforma em uma máquina produtiva de desejo e de trabalho para consumir objetos que revelam que eu estou desejando certo e estou mostrando para os outros que estou bem desejante”, explica. 

O historiador Karnal lembra também que a ansiedade se dá, justamente, pela confusão de não se saber diferenciar o que se quer ter e o que se precisa, de fato, possuir. “É fruto do descompasso entre o real e o imaginário.” 

Segundo ele, a sociedade exige que todos tenham corpos perfeitos e sempre ótimos desempenhos. “Somos incapazes de conviver com coisas que nossas avós e nossos avôs aceitavam muito bem: o fato de que as pessoas engordam após o casamento”, brinca Karnal, exemplificando apenas um dentre vários motivos que podem levar as pessoas a entrar em um ciclo de ansiedade. 

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Ele finaliza dizendo que o mundo exige que todos sejam descobridores de terras, “um Cristóvão Colombo”, que chegou às Americas em 1492, “ou um novo Leonardo Da Vinci”, artista italiano do período do Renascimento. “E, ainda, magro”, finaliza. 

Comum

De acordo com especialistas médicos, todas as pessoas têm ansiedade. E isso não é algo negativo, ao contrário. Esse sentimento, que pode em grau maior ser caracterizado como uma doença, foi muito importante, por exemplo, para o desenvolvimento da humanidade. E é essencial até os dias atuais, para antever perigos. 

Se não existisse ansiedade na época em que a Terra era ocupada pelos primeiros hominídeos, a evolução não aconteceria. Eles muito provavelmente não teriam conseguido escapar das ameaças da pré-história porque é a preocupação que permite antecipar problemas e pensar em soluções de forma rápida. “Se houvesse psicanálise quando estavam por aqui os homens de Neanderthal, saberíamos que eles sofriam por causa da dificuldade de encontrar comida e abrigo”, comenta Leandro Karnal. 

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Hoje, por causa do excesso de estresse nas grandes cidades, homens e mulheres apresentam mais sintomas ligados ao transtorno durante a rotina, sem que exista, de fato, um perigo à vista. Nesses casos, o sentimento se transforma em um transtorno. Um exemplo disso é a TAG, abreviação para Transtorno de Ansiedade Generalizada. Os pacientes ficam preocupados com tudo o tempo inteiro, sem folga. 

É o que explica o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas Daniel Martins de Barros. “(No passado) Quando se encontrava um leão, o ‘alarme’ disparava e (quando acabava a situação de perigo) voltava ao normal. Agora, com violência, boletos, desemprego, a gente está o tempo todo com esse bipe ativado”, explica. “Um sistema que foi feito para disparos eventuais está sempre ligado”, completa.

Quem tiver problemas recorrentes por causa da preocupação e do estresse, diz Martins de Barros, deve procurar um psicólogo ou um psiquiatra, para entender a origem do transtorno. Segundo ele, com a medicação correta e mudanças de hábitos é possível viver bem, apesar da ansiedade. 

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Sono tenso pôs em risco curso de doutorado

Ter ansiedade pode, dependendo do caso, impossibilitar ações comuns do cotidiano, como prestar atenção em uma aula, escrever um texto para um trabalho ou simplesmente dormir. 

Esse é o caso de André Drago, de 34 anos, antropólogo. Ele explica que, quando tinha que entregar trabalhos para um curso de doutorado, não conseguia dormir direito porque estava sempre pensando no texto. “Eu tranquei o começo do curso por seis meses por causa da ansiedade”, admitiu. 

Ele recebeu o diagnóstico de transtorno de ansiedade aos 30 anos e, a partir de então, começou a tomar remédios. Por ter seguido corretamente o tratamento, já conseguiu parar com as medicações. 

No caso de Jamyle Pereira Neves Silva, de 36 anos, advogada, o diagnóstico veio quando ela tinha 28 anos. O distúrbio a prejudicou nos estudos, na fase escolar, e posteriormente a fez deixar um emprego em sua área. “Saí do trabalho, mas não adiantou”, disse. Os sintomas da ansiedade já atrapalhavam todo o seu cotidiano.

Tanto Drago quanto Jamyle viram a doença se agravar para a depressão, mas se recuperaram graças aos tratamentos. 

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