A peleja de Papai Noel

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Os Reis Magos perderam para Papai Noel a disputa pelo imaginário das crianças. A cada dezembro que passa, isso fica mais claro. Há aí, também, a derrota de uma visão de mundo em que, durante séculos, se apoiou o nosso imaginário popular e nossa concepção de esperança. Vejo esse declínio no Papai Noel urbano minimizando os Magos rurais em cidades como São Paulo. É do fim do século 19 a mais antiga notícia que dele conheço por aqui. Com a prosperidade trazida pela economia do café, os fazendeiros usavam seus créditos no exterior para comprar as novidades úteis, mas também muita quinquilharia de ocasião ou da moda. O pai da pintora Tarsila do Amaral tinha diariamente no seu jantar sopa liofilizada importada da Europa, menosprezando a verdurinha daqui mesmo. Papai Noel trouxe consigo até neve artificial. No fundo, um ente para lamentarmos o que não somos. Aqui se comemorava de modo civilizadamente caipira a festa dos Santos Reis, no dia 6 de janeiro, precedida da peregrinação da Folia de Reis, com seus tocadores de viola e adufe. A Folia chegava à porta das casas e cantava o "Deus te salve casa santa", pedia pouso e se demorava na cantoria devota diante do presépio. Tempo das crianças se regalarem (e os foliões também!), com sequilho, biscoito de polvilho, bolo de fubá. A Folia saudava no nascimento do Menino, e depois na Epifania, a revelação, o anúncio do tempo novo, do recomeço, que tem na criança o seu símbolo. Ainda há 50 anos, nos bairros e no subúrbio de São Paulo, as crianças saíam de casa logo de manhãzinha no dia 1º de janeiro para bater à porta dos vizinhos e desejar-lhes feliz ano-novo. Recebiam em troca uma moeda de reciprocidade pelo augúrio. Essa troca amarrava relacionamentos, refundava simbolicamente a sociedade. Cabia às crianças, e apenas a elas, a função litúrgica de renovar os laços sociais. Entre italianos e seus descendentes, na Mooca, no Brás, no Bexiga, no Belenzinho, na Lapa, a função dos Magos no dia 6 era desempenhada pela Befana. A fada trazia para as crianças bem comportadas vários doces; para as que se comportaram mal durante o ano, o "carbone", o carvão de liquirizia, um doce escuro, sinal de advertência aos desobedientes. A função mercantil de Papai Noel foi proposta desde o início em conflito com a função profética e renovadora do Menino e do presépio. O velho barbudo foi usurpando o lugar ritual e renovador do recém-nascido, expulsando-o do imaginário natalino. Hoje o presépio sobrevive residualmente apenas em algumas famílias. Resquício do tempo em que a sociedade renascia liturgicamente na inocência das crianças.

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