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A pintora dos flagrantes

Regina Parra transforma cenas de câmeras de segurança em quadros

Por Valéria França
Atualização:

No elevador, no corredor do prédio, nas empresas e até mesmo nas ruas da cidade. Em toda parte há uma câmera de segurança fiscalizando a vida do paulistano. Agora, algumas dessas imagens roubadas indiscriminadamente do cotidiano urbano ganharam status de arte pelas mãos de uma paulistana incomodada com tanta vigilância. Regina Parra, de 28 anos, resolveu reproduzir cenas de pessoas tirando dinheiro no caixa eletrônico, fazendo compras no supermercado ou circulando pelos shoppings em quadros pintados a óleo. Além de anônimos no cumprimento das obrigações diárias, personagens que ganharam as manchetes dos jornais pelo envolvimento com algum crime, caso de Alexandre Nardoni, pai de Isabella, assassinada no ano passado. Regina reproduziu a cena capturada num supermercado, onde Alexandre, Isabella, e sua madrasta, Anna Jatobá, aparecem harmoniosamente. "Ninguém imaginaria, olhando essa cena congelada, que se tratava de uma família com tantos problemas", diz Regina. Só por curiosidade: apesar do interesse peculiar no assunto, Regina nunca foi vítima de qualquer violência urbana. Para evitar o stress da cidade, frequenta um templo budista no Pacaembu, zona oeste, faz meditações, e trabalha a poucos metros de sua casa, em Higienópolis, para fugir do caos do trânsito. "Em São Paulo, você tem de ficar esperto. À noite, não saio sozinha de carro, por exemplo." Parte de seu trabalho está numa exposição coletiva no Paço das Artes, na Universidade de São Paulo, zona oeste, intitulada Mise-en-scène. Regina foi um dos nove artistas plásticos selecionados entre 323 concorrentes para expor no Paço das Artes. O tema atraiu interesses até fora do Brasil. Neste ano, ela tem dois vernissages marcados na Itália. "Hoje, é difícil ver a arte pela arte. Os jovens tendem a usá-la como um veículo de informação", diz Fernando Oliva, curador e gerente do núcleo de projeto do Paço. "A ideia de reproduzir cenas de monitores de segurança veio quase sem querer", conta Regina. "Eu era ainda estudante e estava na praça de alimentação da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), comendo um sanduíche, quando de repente vi uma câmera quase na minha cara. Fiquei sem graça. Em seguida, preocupada com minha imagem, olhei no espelho para ver se não estava com a boca suja." Regina resolveu contar quantas delas havia no caminho da lanchonete até sua sala de aula: "Contei 30." Em São Paulo, há mais de 500 mil câmeras espalhadas pela cidade, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança (Abesi), e 800 mil, no Estado. Regina conseguiu permissão para copiar algumas cenas gravadas em estabelecimentos comerciais. "Por mais banal que seja a imagem, as pessoas ficam com cara de culpadas." As pinceladas de tinta a óleo deixam a cena impressionista, como se fosse um frame de um vídeo antigo, com baixíssima qualidade de imagem, dissolvendo as feições de seus personagens. "Ela ainda conseguiu criar uma narrativa entre imagens capturadas ", diz Oliva. Para tanto, recorreu a uma brincadeira muito usada por Alfred Hitchcock. Regina aparece em vários de seus quadros do mesmo modo que o mestre do suspense em seus filmes. Ela está, por exemplo, na reprodução de uma imagem feita num supermercado da zona oeste de São Paulo, entre frutas e verduras. Outro quadro retrata a plataforma de um metrô, onde a pintora encara a câmera, enquanto um homem vestido de preto passa às suas costas. O clima de suspense é óbvio. "O homem de preto vai assaltar a moça de casaco branco", grita uma das crianças, que visita a exposição com um grupo de alunos do ensino fundamental. A exposição frustra por ser pequena, apenas 11 quadros, de aproximadamente 30 centímetros por 45 centímetros. Ela tem mais a mostrar. PERSONAGENS DO CRIME Fora da galeria, em seu ateliê em Higienópolis, zona oeste, Regina guarda os quadros com personagens famosos, flagrados por uma câmera pouco antes de uma grande tragédia. Além da família Nardoni, ela pintou também o Airbus A320 da TAM, quando começava a aterrissar no Aeroporto de Congonhas, em 17 de julho de 2007. Instantes depois, a aeronave desgovernada se chocou num prédio do outro lado da pista, matando as 187 pessoas que estavam a bordo. Grandes personagens da história policial também foram pintados, caso de Charles Manson, condenado pelo assassinato da atriz Sharon Tate, mulher do diretor Roman Polanski, na década de 70. Também reproduziu, aos 5 anos, o londrino Jon Venables, que aos 10 sequestrou, torturou e matou um menino de 2 anos com a ajuda de um amigo. Numa outra série, intitulada Controle, a pintora volta a retratar Jon, no dia do crime, andando num shopping de Londres, levando pela mão sua vítima. "Ao mesmo tempo que a câmera tira a privacidade, ela possibilita uma reconstituição antes impossível: ver como age um assassino minutos antes e depois de cometer um crime", diz, se referindo às cenas do baiano Janken Ferraz Evangelista, acusado de matar a ex-mulher a facadas e de sequestrar seu filho, de 1 ano e 8 meses. A câmera do prédio da vítima mostra o acusado entrando e saindo do prédio no dia do crime. Mórbido? "Nesse caso, um pouco", confessa, "mas só porque as pessoas conhecem o futuro da cena, caso contrário, ficaríamos no suspense."

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