A rotina perigosa de quem vive ao lado do trem

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Por Agencia Estado
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A linha do trem já estava lá quando Alexandra dos Santos, de 33 anos, foi viver na Favela do Moinho, há dois anos, com o marido e quatro filhos. Mas ela, como os vizinhos, não tinha outro lugar para morar. Mal chegou, uma tragédia. Uma criança de 7 anos foi atropelada por um trem. "Ela viu o corpo", conta Alexandra. "Ela" é Jeniffer Caroline, sua filha, de 8 anos, que tinha 6 na época do acidente. "Mostrei pra ela ficar traumatizada e ver o perigo que corre." Alexandra agora tem seis filhos, dois bem pequenos, que andam no colo. Os maiores são a grande preocupação da mãe. "Por mais que a gente diga para olhar os dois lados antes de atravessar, sabe como é, criança não tem juízo, passa direto." A cancela não funciona. Numa placa, quem sabe, lê: "Pare, olhe, escute." Um sininho avisa da passagem do trem. Só que, às vezes, ele também não toca. Então, é preciso prestar atenção ao apito do trem. Eles passam o tempo todo, em algumas ocasiões nos dois sentidos, e sem diminuir a marcha. "Esses dias mesmo estava sem o sinal", conta Diva da Silva, de 52 anos, que mora com o marido, Walter, encanador, filhos e dois netos, de 9 e 5 anos. Um deles vai para a escola e outro para a creche, sempre bem presos na mão da avó. "Não largo deles um segundo. Só de pensar no que pode acontecer, minha pressão sobe." Na semana passada, um cachorro foi atropelado. "Ele foi cortado ao meio, precisa ver que horror", conta Diva. "Já pensou se fosse uma criança?" Os medos de Alexandra não terminam nos filhos. "Quando meu marido bebe, eu me desespero. Digo: ´Amauri, cuidado com o trem. Olhe os dois lados, Amauri!´ É o mesmo que não dizer nada." A Favela do Moinho fica nos Campos Elíseos, região central, embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel, que liga a Avenida Rudge à Rio Branco. Paralela à Rua Eduardo Prado corre a linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Os primeiros moradores - a maioria catadores de papel que encontraram ali o espaço ideal para acomodar-se e aos carrinhos - começaram ocupando um velho prédio abandonado e em estado de degradação absoluta. Encostados ao muro da linha, surgiram outros barracos. E outros e outros, bairro adentro. A água é apanhada de uma torneira, na entrada da favela. A luz vem de ligações clandestinas. Por conta da ocupação dos moradores, há lixo por toda parte. Montes de lixo. "Eles trazem para reciclar e fica essa sujeirada", diz Marcos Santos de Jesus. Para ele, tão perigosos quanto os trens são os ratos, enormes, que invadem as casas, à noite. Contra os ratos, veneno. Para os trens, toda atenção. "A gente se orienta pelo apito. Mas não sabe de que lado vem. Às vezes vêm dos dois lados", conta Terezinha Maria de Jesus, de 32 anos, cinco filhos criados dentro de casa. "Lá fora é muito perigoso." Despertador - "Perigoso é, mas a gente não tem pra onde ir", diz Juvenil Nunes Machado, de 54 anos, que há 4 mora com a mulher, Osilda, de 25, no barraco número 230, colado ao muro. Eles são de Campina da Lagoa, no Paraná. Eram bóias-frias, ganhavam R$ 5 por dia. Aqui, só Juvenil trabalha. "Tiro R$ 10, R$ 15, às vezes até R$ 40 por dia", conta. "Lá a vida estava difícil, aqui ficou muito melhor, graças a Deus." Eles dormem lá pelas 8 da noite porque bem cedo passam os primeiros trens. "Deu 4 horas no relógio, vai o de lá e vem o de cá", conta Juvenil. Aproveitam para se levantar. Osilda prepara o café e logo o marido está na rua catando papelão. Ela apanha água embaixo do viaduto e traz as vasilhas em um carrinho de mão. Ele volta para o almoço e depois vai trabalhar de novo. "Essa é a vantagem da moradia: perto do serviço." A carroça fica na porta do barraco. "Tudo aqui é carroceiro", diz ele, fazendo o "perfil" da vizinhança. No barraco forrado de carpete, enfeitado com fotos dos cantores Daniel, Zezé di Camargo e Luciano e do ator Silvester Stallone e bem junto da linha do trem, vivem os pernambucanos Olavo Roque da Silva, de 22 anos, e sua mulher Viviane, de 18, grávida de sete meses. O motivo da mudança para São Paulo foi o de sempre: falta de trabalho. Aqui, Olavo comprou o barraco de uma cunhada por R$ 400 e já pagou, catando papelão até em dias de domingo na Barão de Limeira e ganha até R$ 15 por dia. O trem passa tão próximo que o barraco estremece e até a televisão sai do ar. Olavo já pensa no sofrimento do filho que está a caminho. "Tenho medo que o barulho do apito estoure os ouvidos do bichinho." Para encurtar o caminho até a Rua Eduardo Prado, os que moram no meio da favela se utilizam de um buraco no muro que dá direto na linha. Paulo Cabral, de 15 anos, e William Lopes, de 17, fazem isso "direto". Também se sentam nos trilhos para conversar, como se fosse um banco de jardim. "Se o trem vem, a gente sai", diz Paulo. Os dois saíram de casa, na zona leste, há um ano e moram em um barraco que estava abandonado. Vivem de tomar conta de carros. A Secretaria de Habitação e a Secretaria de Infra-Estrutura Urbana não planejam construir passarela no local nem remover a favela. Ambas alegam que a área pertence à CPTM. Já a CPTM diz que a reintegração de posse tem de ser feita pela Rede Ferroviária Federal.

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