A viagem sem fim

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Por José de Souza Martins
Atualização:

A comoção decorrente da tragédia do voo 447, da Air France, é característica de nossas tradições culturais em relação à morte. Somos uma sociedade que condivide, ritualmente, sentimentos relativos ao ser coletivo que somos. A morte é um desses momentos de expressão desse ser inteiro que se esconde no repetitivo do dia a dia, para emergir diante do inesperado que nos fere a todos. Isso é antigo por aqui. Diz respeito ao imaginário do pertencimento e, nele, à concepção de que mesmo os mortos não se apartam de nós. No mínimo, sobrevivem na memória, lembrados de avô para neto. Pertencer e retornar aos seus está no centro desse imaginário suave e conciliador dos contrários, como a vida e a morte. Dois episódios antigos da história paulista mostram os meandros dessa nossa cultura da eternidade e do retorno. Um é o da morte de Fernão Dias Paes, "o caçador de esmeraldas". Preparando a própria morte, como era comum naqueles tempos, Fernão Dias fez larga doação aos monges de São Bento, em 1650, para que construíssem novo mosteiro e nova igreja. Pedia em troca sepultura para si, sua mulher e seus descendentes ao pé do altar, perto do sacrário, a morada de Deus. Em 1674, partiu em busca de minas de prata e esmeraldas, chefiando grande expedição de brancos, mamelucos e índios. Morreria no sertão, de malária, em 1681. Foi sepultado em cova rasa, sobre a qual acenderam o fogo, que ardeu durante dias. Finalmente, foi exumado, seus ossos separados e limpos, como faziam alguns grupos indígenas, e trazidos para São Paulo, para enterro definitivo. Está lá, com a mulher, sepultado no piso, diante do presbitério, na Igreja de São Bento. Outro episódio ocorreu durante expedição comandada pelo sargento-mor Teotônio José Juzarte, em abril de 1769, uma frota de barcos que desceu o Rio Tietê, o Rio Paraná e subiu o Rio Iguatemi. Levava povoadores para ocupar o território de Iguatemi, na fronteira entre a América Portuguesa e a América Espanhola, no limite do que é hoje o Paraguai. A frota partira do porto de Nossa Senhora da Penha de Araritaguaba, hoje Porto Feliz. Naquela rota muitos morriam flechados pelos índios ou vitimados pelas febres. Por isso, antes da partida, foram todos confessados e sacramentados, preparados para a morte. Na madrugada do dia 21 de maio faleceu a filha solteira de um casal de povoadores. Os pais queriam levar o corpo consigo, para enterrá-lo na barra do Rio Iguatemi, perto do local de povoamento. Encheram de terra um caixão vazio que servira para transportar o toucinho e nele sepultaram a morta, a tumba portátil levada numa das canoas. Mas os viajantes "entraram a tomar agouro" e a causa era a defunta que levavam. Contra a vontade dos pais, foi a morta enterrada numa ilha do Rio Paraná para ter paz e deixar os vivos em paz.

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