Aos 90, aristocrata continua inquieta

Enquanto prepara exposição de suas obras, artista plástica lembra da época em que o pai batizou ruas da Aclimação

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Por Rodrigo Brancatelli
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Dona Maria Amélia Arruda Botelho de Souza Aranha fala como se estivesse lendo um livro. E conta histórias que poderiam muito bem fazer parte de um. Tailleur, flor de seda na lapela, cabelo castanho impecavelmente penteado e bengala com uma figura de tigre no cabo, a artista plástica de 90 anos percorre vagarosamente os cômodos da sua casa no bairro do Morumbi, mostrando quadros, esculturas e bichos de cerâmica nascidos de suas mãos. Parece que o tempo anda um tantinho mais devagar ali - de inspiração modernista, a casa-ateliê lembra mais um grande museu, com móveis de jacarandá, porcelanas delicadas, lustres europeus, bronzes e um sem-número de detalhes a cada passo. "Está vendo aquele retrato ali?", indaga, apontando para a imagem de uma mulher de 20 e poucos anos, com vestido de baile com rendas. "Eu mesma que fiz, é um auto-retrato. Foi superdifícil, eu pintava um pouquinho e depois ia separar meus filhos, que sempre estavam brigando." Depois de 50 anos dedicados à arte, apenas o corpo perdeu um pouco a agilidade. A memória e a vontade de encarar novos desafios continuam ali, bem nítidas. Ela freqüenta regularmente restaurantes ("adoro o hadoque do Parigi"), faz aulas de cerâmica, viaja nos fins de semana para o Guarujá, vai sempre ao mesmo salão há 30 anos para cortar o cabelo e fazer as unhas, passeia pelo Parque do Ibirapuera. Na festa de aniversário, em julho, avisou que não queria presente. "Pedi uma exposição só para mim, para que pudesse mostrar, dividir toda essa minha história com as pessoas", conta. O pedido foi atendido - de terça-feira até o dia 30, 65 de suas obras, entre esculturas, pinturas e instalações, ficarão expostas no Museu Brasileiro da Escultura (MuBE). Símbolo da aristocracia paulista, mãe de 4 filhos, avó de 11 netos e bisavó de 12 bisnetos, Maria Amélia pode passar horas contando causos da sua juventude e da cidade de São Paulo. Cita datas, roupas, impressões e diálogos, gesticula, faz pausas dramáticas, quase dramatiza. Consegue ir da história dos seus antepassados da Ilha de São Miguel, em Portugal, até chegar ao nascimento dos bisnetos, sem nunca perder o fio da meada. Também parece gostar de ouvir e de colecionar histórias - está sempre perguntando a opinião das pessoas, seja dos funcionários da casa, dos visitantes de suas exposições ou mesmo de anônimos que encontra sem querer. "Você tem olhos apaixonados, você está apaixonado?", pergunta para o repórter. "Deveria estar. Não há nada melhor no mundo do que se apaixonar. É a chama de todas as boas histórias deste mundo." O BOCAIÚVA E O MARIDO Como todas as boas histórias devem ser, portanto, a de Maria Amélia é guiada por um grande amor. Nascida no bairro do Paraíso e criada na Rua General Jardim, na Vila Buarque, Maria Amélia foi educada pelas rigorosas freiras do Colégio Des Oiseaux, na Consolação. Começou a desenhar como brincadeira na fazenda da família em São Carlos, onde passava férias. Mas, naquela época, gostava mesmo era de brincar no Parque da Aclimação, aberto pelo avô Carlos José Botelho - um dos fundadores da Santa Casa de São Paulo. "Toda a Aclimação era da minha família", diz. "Foi meu pai quem deu o nome das ruas. Ele tinha alguma fixação com pedras preciosas, então batizou as vias de Turmalina, Topázio, Diamante..." No meio do terreno havia um lago, que serviu de ponto de partida para um pequeno bosque. Como o pai de Maria Amélia recebia muitos animais de presente do seu amigo Marechal Rondon - não estamos falando de meros cachorros, mas sim de leões, cisnes, macacos, onças e serpentes -, toda a bicharada foi colocada no local para a criação do primeiro zoológico da cidade. "Eu só não gostava da sucuri. Ai, que medo", lembra. Apoiada pelos pais, aos 17 anos foi estudar com Antonio Rocco, um dos pintores acadêmicos que a elite da época patrocinava. O pai, aliás, foi um dos responsáveis pelo grande causo da sua vida - "o amor que vale a nossa existência" -, como ela gosta de contar. Logo quando sua filha completou 18 anos, ele comprou de um colega um cavalo, batizado de Bocaiúva. Com um belíssimo porte, Bocaiúva se transformou na estrela do haras da família. Ninguém conta melhor os capítulos seguintes da história do que a própria Maria Amélia. "Um dia, meu pai me chamou no estábulo e disse: ?vai lá do lado do Bocaiúva, vou tirar uma foto de vocês dois juntos?. A foto ficou tão boa que ele guardou o retrato na carteira. Até que, anos depois, meu pai encontrou o antigo dono do Bocaiúva na rua. O cavalheiro perguntou como estava o animal e meu papai mostrou a foto. Ele me contou em segredo que, na hora, o cavalheiro disse sem rodeios: "Meu senhor... ela é linda... a garota. É filha do senhor? Ainda vou casar com ela?." Meses depois, Maria Amélia encontrou o tal cavalheiro em um baile. Seu pai tratou de apresentá-lo - "Filha, este é o senhor Joaquim Carlos Egydio de Souza Aranha, que nos vendeu o Bocaiúva." A artista plástica se emociona ao lembrar. "Eu estava com um vestido tomara-que-caia e uma pulseira em formato de cobra. Lá pelas tantas da noite, enquanto conversávamos, a pulseira caiu. Ele se abaixou, pegou do chão e colocou no meu pulso. Nasceu ali a minha primeira e única paixão." Há cerca de 20 anos, o marido faleceu. Foram dias, meses, anos muito difíceis, até que Maria Amélia resolveu se voltar novamente para a arte. Adotou um nome artístico (Mabsa, suas iniciais), se dedicou a escultura e começou a dar vida a bichos fantásticos. "Foi uma terapia", conta ela, que todo dia trabalha em novas obras. "E um jeito também de renovar, de me transformar. É assim que eu renovo minha cabeça. Os protagonistas das minhas histórias já se foram... Agora, aos 90, acho que nasce uma outra Mabsa, pronta para ter novas experiências, criar novas peças e aprender novas histórias."

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