Aposentada Abigail Rossi é o primeiro rosto da tragédia

"Ela era quem animava todas as outras senhoras do grupo", conta professora

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Uma senhora alegre, apaziguadora, solidária, fanática corintiana e cheia de vida - tanta vida que (pasme!) aos 75 anos planejava praticar surf, após empolgar-se com o esporte ao conseguir ficar de pé no pranchão na primeira aula-teste, em dezembro, na piscina da Associação Cristã de Moços (ACM) de Santo Amaro, da qual era sócia há 20 anos e onde era chamada carinhosamente de ´vó´. É esse o perfil traçado por parentes, amigos, professores e outros que conviveram com a aposentada Abigail Rossi de Azevedo, de 75 anos, soterrada após desabamento das obras da Estação Pinheiros da Linha 4 do Metrô, na sexta-feira. Ela é o primeiro rosto da tragédia, que se estima ter matado outras sete pessoas - três outros corpos já foram localizados, mas, até a madrugada desta terça-feira, não haviam sido identificados nem resgatados. O marido de Abigail, Salvador de Azevedo, de 80 anos, já na sexta-feira, quando soube da cratera de Pinheiros pela televisão, perdeu a esperança de ver de novo a mulher, com quem era casado havia 47 anos. "Ela está naquele buraco. A minha Abigail está soterrada ali", repetia, sem parar. Foi Salvador quem primeiro notou o desaparecimento da mulher. Ele a esperava na estação de trem Santo Amaro no horário combinado, às 15h30, mas Abigail nunca chegou. Naquele dia, ela fora visitar a irmã Nair Rossi Godoy, de 84 anos, em Pinheiros. As duas almoçaram juntas no restaurante Barbarella - "do seu Carvalho", o dono, da qual era amiga. Dali, pegou o ônibus para uma consulta de rotina no Hospital Sorocabana, na Lapa. Na volta, para evitar o trânsito, desceu no Largo da Batata, seguiu pela Rua Martin Carrasco, virou na Rua Paes Leme e caminhou até a Rua Capri, onde pegaria o trem na estação Pinheiros até o encontro com o marido no terminal Santo Amaro. Nunca mais foi vista. "Por que eu não a segurei aqui, meu Deus?", perguntava-se a irmã Nair, a última da família a vê-la. Muito abalada, mas sem querer deixar a tristeza tomar conta da família, Nair, a outra irmã Elvira Pereira Rocha, de 80 anos, duas sobrinhas de Abigail, dois sobrinhos-netos, uma neta e uma prima se reuniram para o almoço, na segunda-feira, no mesmo restaurante do "seu Carvalho", onde a aposentada almoçou horas antes do acidente. Pediram um vinho e brindaram em nome da alegria que Abigail sempre as ensinou a ter. "Se estivesse aqui, ela estaria divertindo a todos. Tinha um alto astral sem limites", disse, num misto de riso e choro, a sobrinha Marilsa, criada por Abigail. "Ela tinha 13 anos quando eu nasci. A minha mãe teve de trabalhar e foi a ´santa´ (apelido de Abigail entre familiares) que me criou", diz. "Foi ela quem me arrumou o colégio de freiras, ajudava a minha mãe a pagar e ia me visitar sempre." Marilsa lembra-se dos passeios ao centro e das tardes no cinema, que passava com a tia. "O dinheiro era pouco, mas ela arrumava programação, nem que fosse gratuita. Dava muito valor para o conhecimento", diz. A sobrinha também se lembra do dia em que as duas iam para o teatro quando um ônibus quase a atropelou. "Ela (Abigail) se jogou sobre mim, me abraçou, na tentativa de me proteger. O ônibus conseguiu brecar, mas ela se arriscou por mim. Era assim. Sempre estava lá quando precisávamos." Era também Abigail que apartava as brigas em família. "Com seu jeito alegre e desbocado, quebrava o clima e ficavam todos na mais santa paz." Vem daí o apelido de santa. Abigail morava com o marido, o enteado Salvador (Neco, para os íntimos), a filha Ângela e a neta Beatriz em um sobrado espaçoso na Avenida Tomás de Souza, no Jardim São Luís. Tinha, além do enteado e de Ângela, outros dois filhos, Silvio e Vera, com quem passou o último Réveillon na chácara da família em Piracicaba. As filhas não quiseram falar com a imprensa. "Ela (Abigail) não era religiosa, mas tinha Deus no Coração. Ela sabia que ia morrer. No Ano Novo, não parava de dizer, ´se eu estiver aqui no ano que vem...´. Falou muitas vezes. Ela nunca foi disso", diz Marilza, que soube do acidente pela TV e chegou a pensar: ´tomara que não tenha ninguém ali´. Não sabia que a própria tia e segunda mãe seria uma das vítimas soterradas. "Não tem centro, não tem coisa no que a gente possa se apoiar." Um perfil de guerreira Magrinha, 1m56 de altura, Abigail parecia uma figura frágil, mas era uma guerreira. Filha de imigrantes italianos, ela perdeu o pai quando ainda era criança e teve de ajudar a mãe e os três irmãos, trabalhando desde os 13 anos até a aposentadoria. Talvez por isso, lhe sobrasse tanta energia aos 75 anos - faria 76 anos no dia 13 de maio. Como muitas taurinas - segundo garantem os astrólogos - Abigail era vaidosa. Tinha cabeleireira própria e não saia de casa sem retocar a tintura que deixavam as madeixas aloiradas. Quem passou os últimos momentos com Abigail, lembra da aposentada com carinho. No hospital Sorocabana onde fazia consultas esporádicas de rotina, como a do dia da tragédia, todos a conheciam. "Era muito calma, mas alegre. Conversava com todos aqui", diz a funcionária Mercedes Bicudo dos Santos Barbosa, que trabalha no hospital há 50 anos. "Ela era, para mim, como se fosse da família", lembra ´seu Carvalho´, que serviu o último almoço a Abigail, no restaurante Barbarella. Amigos e professores que conviviam com ela nas aulas de natação, hidroginástica e até surf guardam na memória uma Abigail festeira, que animava a todos à sua volta. "Ela era quem animava todas as outras senhoras do grupo. Era engraçada. Toda hora, parava a aula. Vivia mergulhando. Adorava brincar, afundar na água", diz a professora Thays Ravanelli, de 28 anos. Também brincava com o professor, Caio Cappelli de Paula, de 21 anos, por quem tinha verdadeira paixão e já chamava de neto. "Ela me abraçava. Dizia: vem cá, meu neto.". Era ele quem a levaria para a praia para um curso de surf num fim de semana de janeiro. "Ela não tinha medo de levar caldo", diz o professor. Abigail adorava o sol e o mar. Tinha apartamento na praia do Itararé, em São Vicente, para onde já havia combinado uma viagem com as outras colegas do grupo durante este verão. "Era mais do que uma amiga. Nos divertíamos muito", diz Nilza, que só soube da morte da colega ontem pela televisão. "Eu não queria acreditar." Há pelo menos quatro anos, Abigail acordava às 5h30, deixava pronto o café da manhã e saia para as suas atividades matutinas. Tomava três ônibus até a ACM Santo Amaro: às terças e quintas-feiras, às 7h, praticava hidroginástica. Segundas, quartas e sextas era dia de natação, às 7h45. "Ela era muito falante e alegre. Tinha um problema na perna (um pino, por causa de uma queda na rua), mas não se deixava vencer. Arminda, Nilda, Nilza, Nivalda e Abigail formavam o animado grupo da terceira idade. Na festa de fim de ano, Abigail levou seu famoso pão de queijo. Também eram conhecidos na família suas duas especialidades: rabada e bacalhoada. Mas preferia mesmo uma cervejinha para acompanhar peixe frito com salada, arroz, feijão e ovo - foi este o prato que pediu no último almoço no restaurante Barbarella. Aos familiares, dizia, em tom de brincadeira: "Se tiver de ir (dessa vida), vai de barriga cheia, sem passar vontade." Amigos e parentes no enterro Cerca de 200 pessoas se despediram da aposentada Abigail Rossi de Azevedo, a ´vó´ Abigail, na tarde desta segunda-feira. Ela foi enterrada no Cemitério Central de Santo Amaro, às 18h, após um breve velório, onde parentes e amigos se reuniram para rezar por ela em voz alta. O caixão chegou lacrado às 17h30. A família acompanhou o trabalho das equipes de resgate durante todo o sábado e domingo, até a madrugada desta segunda-feira, quando o corpo foi localizado e identificado. "A angústia era tanto, que chegou a ser um alívio quando encontraram o corpo", diz Silvio Antônio de Azevedo. Segundo ele, o corpo foi encontrado por volta de 5h de segunda. Abigail teria sido engolida pela cratera após a queda do ônibus e dos caminhões. "É possível que ainda tenha tentado fugir, mas como tinha idade, não conseguiu escapar", acredita o enteado Salvador de Azevedo. Abigail tinha a pele e a roupa (camiseta e saia, como sempre andava) manchada de terra, segurava a bolsa com uma das mãos e tinha a ponta dos dedos machucados - acredita-se que tenha tentado sair da cratera - o que dificultou o trabalho dos peritos em colher impressões digitais. O laudo do Instituto Médico Legal apontou politraumatismo como causa da morte. "Se for isso, pode ser que não tenha sofrido tanto. Não morreu asfixiada. Ela não tinha terra no pulmão", disse Silvio, muito abatido, após o enterro. Ele não soube informar quem pagou as despesas, mas disse que a família não teve de arcar com qualquer custo. Declarou, ainda, ser "muito cedo" para falar em indenização. "Foi uma fatalidade", disse, humildemente. "Seria precipitado, agora, dizer qualquer coisa além disso." Preocupação maior dos filhos de Abigail era com o pai, Salvador, de 80 anos. Chorando muito, ele repetia no velório a frase que vinha dizendo desde sexta-feira, quando assistiu ao acidente pela televisão: "Ela está no buraco. Minha mulher caiu no buraco." Segundo a família, Salvador estava medicado. Ele e as irmãs de Abigail, Nair, de 84 anos, e Elvira, de 80 anos, haviam sido atendidos em casa, antes do enterro, por um médico enviado pelo Metrô. Uma das amigas mais abaladas, durante o enterro, era Josepha, de 80 anos, que trabalhou para a aposentada durante três décadas. "Era uma mãe", disse. O enteado, Salvador, estava inconformado. "Essa mulher me carregou no colo. Foram 45 anos de dedicação", disse. Vereadores mandaram coroas de flores ao cemitério. Alguns, como o vereador Milton Leite, foram pessoalmente ao enterro. O filho de Abigail, Silvio, foi administrador regional da Capela do Socorro, durante a prefeitura de Celso Pitta. Além de Salvador e Silvo, Abigail tinha duas filhas, Angela e Vera e quatro netos. Elas não quiseram dar entrevistas.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.