Arquidiocese de SP cria comissão para investigar abusos sexuais na Igreja

Iniciativa atende a determinação do papa; denúncias não poderão ser anônimas e serão analisadas por comissão formada por religiosos e leigos

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Por Claudio Vieira e Renata Okumura
Atualização:

SÃO PAULO -  A Arquidiocese de São Paulo anunciou nesta quarta-feira, 5, a criação de um sistema de notificação de abusos sexuais por integrantes da Igreja Católica. A iniciativa atende a determinação do Papa Francisco, que, em maio de 2019, deu prazo de um ano para todas as dioceses do mundo criarem serviços de queixa e resposta para relatos de violência sexual e assédio

"Podemos dizer é tarde, mas veio (a comissão). Para as vítimas sempre é tarde. Mas não é de agora que estamos avaliando denúncias", declarou o arcebispo metropolitano de São Paulo, Cardeal D. Odilo Scherer, em coletiva de imprensa.

D.Odilo Pedro Scherer é arcebispo da Arquidiocese de São Paulo Foto: JF Diorio/Estadão

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Conforme o decreto papal “Vos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo, em latim), as investigações devem garantir a confidencialidade dos envolvidos e ser rápidas ­­- a duração prevista é de até 90 dias. Os religiosos que acobertarem relatos também podem ser punidos. 

As denúncias poderão ser apresentadas de modo presencial, por e-mail e em carta, mas não serão aceitas informações anônimas. Elas deverão fornecer "de forma detalhada", segundo regulamento da arquidiocese, dados sobre o caso, como nome e contatos do denunciante, datas e locais em que ocorreram os supostos abusos. Também é recomendada a apresentação de material documental, fotos ou gravações, além de contatos de testemunhas. 

Os casos na Arquidiocese de São Paulo - instituição que contempla paróquias da região central e parte das zonas oeste, sul, norte e leste - serão investigados pela "Comissão Arquidiocesana para a Aplicação do Motu Proprio Vox Estis Lux Mundi", criada pela Cúria Metropolitana em 26 de fevereiro e que terá atuação “por tempo indeterminado”. 

"Tem a incumbência de zelar para que todas as instituições e organizações católicas presentes e/ou atuantes no âmbito desta Arquidiocese sejam lugares seguros e livres de abusos sexuais”, diz o decreto de criação da comissão, que entrará em vigor neste domingo, 8.

Antes mesmo da criação comissão, denúncias foram feitas contra padres da Arquidiocese de São Paulo, sendo que alguns casos foram levados à justiça comum, mas os números de afastados não foram divulgados

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"É fato. Há muitos anos, esses escândalos de abusos sexuais vindos à tona fazem mal às vítimas e trazem danos à credibilidade da pregação da própria igreja", disse D. Odilo. "Denúncia anônima e 'eu ouvi dizer' não tem como ir adiante. Denúncia assumida iremos atrás.”

Sobre a relação entre o processo conduzido dentro da arquidiocese com a justiça comum, D. Odilo explica que irá proceder de acordo com o estabelecido na lei civil. "Deverá haver colaboração com a Justiça nos termos da lei. As pessoas serão orientadas sobre a possibilidade de também fazerem a denúncia perante a autoridade civilcompetente".

Comissão reunirá religiosos, clérigos e leigos

A comissão será composta por ao menos oito membros, incluindo clérigos, religiosos e leigos, considerados "peritos" em Direito Canônico, Direito Civil e Penal, Psicologia, Assistência Social e Pastoral, com mandato por tempo indeterminado. Ela irá se reunir ao menos a cada duas semanas para avaliar denúncias recebidas. 

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"A comissão não é um tribunal. É uma comissão de ouvidoria que tem a competência de receber denúncias sobre os delitos tipificados. Fazer um primeiro discernimento sobre os fatos. Ela não será um tribunal nem emitirá sentenças. Se for o caso, a parte de tribunal será o passo seguinte. A investigação mais aprofundada passa a ter uma comissão de investigação própria, sendo decidido depois se irá ao Tribunal Eclesiástico, mas suas diversas instâncias", afirmou o arcebispo metropolitano de São Paulo.

Além de informar o arcebispo sobre as denúncias, a comissão também deverá informar a suposta vítima e o suposto agressor sobre os encaminhamentos e propor medidas para acompanhar e ajudar os afetados. 

O regulamento da comissão prevê, ainda, a obrigação de "acolher com caridade e escutar as vítimas e seus familiares que apresentarem uma denúncia de abuso sexual contra menores e/ou contra pessoas em situação de vulnerabilidade". "A recusa ou omissão na observância das normas ou na execução do estabelecido neste regulamento serão passíveis de sanções canônicas.”

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O coordenador da comissão será o padre Ricardo Anacleto, nomeado pelo arcebispo, sendo o responsável pela organização dos trabalhos da comissão. O regulamento prevê o encaminhamento "imediato" o das denúncias recebidas para "a instauração dos procedimentos cabíveis". 

Segundo o regulamento, os trabalhos serão acompanhados e avaliados periodicamente. Durante as investigações, a comissão deverá "adotar e promover políticas de transparência, no respeito à privacidade e à reputação das pessoas". 

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A Igreja considera passíveis de investigação casos em que algum religioso praticou alguma das seguintes ações: forçar alguém, com violência, ameaça ou abuso de autoridade, a atos sexuais; ter atos sexuais com um menor de idade ou com uma pessoa vulnerável; produzir, exibir, portar ou distribuir material pornográfico infantil; e atuar no recrutamento ou indução de um menor ou pessoa vulnerável a participar em exibições pornográficas.

Para Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos,  representante do Brasil na Pontifícia Comissão para Proteção dos Menores, criada pelo Papa Francisco, as Dioceses estão respondendo a uma convocação do próprio Papa. "O Papa pediu para que todas as Dioceses do mundo criasseminstrumentos visíveis e acessíveis para receber esse tipo de denúncia. E isso para que nunca mais exista esse tipo de situação e que a igreja continue sendo um lugar seguro para crianças e adolescentes. As Dioceses estão cumprindo seu papel em obediência ao Santo Padre e ao próprio mandamento de Cristo."

Sobre o fato das denúncias não serem anônimas, a Giovanelli diz que trata-se de um princípio que está de acordo com a justiça. "Uma denúncia para ser válida juridicamente não pode ser anônima. Até para facilitar o trabalho da igreja com autoridades civis. A igreja não quer e não pode se abster de trabalhar com as autoridades civis em casos como os de abuso." 

Procurado pelo Estado, o Ministério Público do Estado de São Paulo se colocou à disposição da Arquidiocese para qualquer tipo de colaboração com a comissão. Também procurada pelo Estado, a Secretaria de Segurança Pública afirmou não ter representantes na comissão.

Arquidiocese de Porto Alegre foi primeira a aderir

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A arquidiocese pioneira no cumprimento da medida do pontífice foi Porto Alegre, no dia 26. Na capital gaúcha, a Comissão Arquidiocesana Especial de Promoção e Tutela de Crianças ficará responsável por combater e denunciar o abuso infantil vindos de membros da Igreja nos 29 municípios sob sua circunscrição. 

"Temos de reconhecer que não se deu a devida atenção ao longo do tempo a esses casos de abuso. É uma realidade sem dúvida e que explodiu mundo afora, em torno de 20, 30 anos atrás e de repente nós começamos a ser informados”, disse no lançamento do serviço dom Jaime Spengler. 

Nessa arquidiocese, o trabalho incluirá denúncias por e-mail e telefone próprio e a comissão de análise terá uma assistente social, um jurista, uma procuradora de justiça do Ministério Público e a delegada-chefe do departamento de Grupos e Pessoas Vulneráveis da Polícia Civil do Rio Grande do Sul.

‘Crimes de abuso sexual ofende Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais’, diz papa

Na introdução de "Vos estis lux mundi", Francisco ressalta que os “crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis”. 

O artigo 6 da carta apostólica estabelece que um novo escritório vai recolher queixas contra “cardeais, bispos, patriarcas e legados (núncios) do Romano Pontífice” e contra outros padres. As queixas contra bispos e superiores podem acontecer na própria diocese ou noutra, mas também “podem ser enviadas à Santa Sé diretamente ou através do Representante Pontifício”, ou seja, a Nunciatura. Até o ano passado, os clérigos e religiosos denunciavam os casos de violência de acordo com sua consciência pessoal. A grande novidade é que o papa Francisco torna juridicamente vinculativa em toda a Igreja Católica a denúncia de abusos sexuais “no menor tempo possível” por padres e religiosos. Os leigos que trabalham para a Igreja também são encorajados a denunciar casos de abuso e assédio.

Comissões são inspiradas em exemplo de Boston

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Grande parte das comissões que vem sendo criadas no País espelha o trabalho iniciado em Boston (EUA), epicentro das denúncias de acobertamento de crimes sexuais, que resultaram em denúncias que abalaram os pontificados de Bento XVI e Francisco e ainda renderam um filme ganhador do Oscar, "Spotlight". Estima-se que a onda de denúncias tenha atingido pelo menos 2% do clero americano.

O Vaticano ainda definiu que haverá um sistema ampliado de escuta às vítimas. Como o Estado adiantou em 2019, um projeto-piloto nesse sentido será feito no Brasil. O trabalho está sendo feito em parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que também tem uma comissão especialmente voltada para o problema.

Prefeitura tem serviço de proteção

Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que "possui 24 serviços de Proteção Social à Criança e Adolescente vítimas de violência, abuso e exploração sexual, que dispõem de mais de duas mil vagas no total." Ainda segundo a nota, "o serviço oferece atendimento social e interdisciplinar para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, abuso ou exploração sexual, bem como aos seus familiares, proporcionando-lhes condições para o fortalecimento da autoestima, superação da situação de violação de direitos e reparação da violência vivida. O acesso a esse serviço se dá por encaminhamento dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), Poder Judiciário e Conselhos Tutelares.

No ano de 2019, em média, 2.057 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos foram atendidos mensalmente nos serviços da Prefeitura. A predominância de atendimento foi do sexo feminino, sendo 62% do total. Entre os motivos de atendimento, 37% foram por abuso e exploração sexual, 27% por violência psicológica, 20% por violência física e 16% por negligência. Todos passam por atendimento individual e atividades, inclusive familiares e em alguns casos, agressores, que visam à proteção das vitimas e encerramento do ciclo de violência.

Já a ONG  Childhood Brasil tem como foco de atuação o enfrentamento do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes. A instituição trabalha na criação de programas e projetos para que a proteção da infância e da adolescência seja pauta de políticas públicas e privadas.

Segundo a presidente da Childhood Brasil, Roberta Rivelino, calcula-se que menos de 10% dos casos de abuso contra crianças sejam reportados às autoridades. "Esse assunto ainda é um tabu, um tema difícil de trazer à luz. Por isso é tão importante a criação de comissões ou de espaços em onde é possível trabalhar com as famílias e trazer esse assunto à mesa", disse. "Precisamos de práticas de acolhimento que criem um ambiente de conforto para familiares e crianças", completou.

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/COLABOROU PRISCILA MENGUE E GILBERTO AMENDOLA

Como denunciar abusos na Arquidiocese de São Paulo:

De forma presencial: sede da Comissão (Rua Xavier de Almeida, 818, Ipiranga). A denúncia presencial deve ser agendada previamente por email.Pelo e-mail:tutela.arquisp@gmail.com.

Por carta registrada: aos cuidados da Comissão (Rua Xavier de Almeida, 818, Ipiranga - CEP 04211-001).

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