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Cajango não tem medo de morrer

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Pensando ser o akita um chow-chow, o cão que tem aquilo roxo na língua, dirigi-me até o Ipiranga disposto a adquirir um filhote de cachorro. O imigrante que acaba de chegar é um sujeito livre para cometer extravagâncias, e sozinho o suficiente para desejar um quadrúpede em sua diminuta residência. Era bem este o meu caso quando saí levando aquele akita nas axilas, não sem antes ser alertado de que se tratava de um dos cães mais bravos do mundo. "Se quiser que ele cresça assim", disse a vendedora, "não o trate com carinho". Baseado em tão singela recomendação, pus nele o nome de Cajango - o nada singelo personagem de Corpo Vivo, de Adonias Filho. De fato, o akita é um monstro. O falecido senhor Ayamá, dono da clínica veterinária mais antiga de São Paulo - e segunda geração de uma família em que netos, bisnetos e até cunhados são veterinários -, disse-me numa dessas minhas animalescas entrevistas jamais ter sacrificado um cachorro com boa saúde. A não ser uma vez, quando arvorou-se em juiz e condenou um guloso macho de akita. Este havia comido pênis e saco escrotal de um menino de 12 anos. Cajango me mordeu uma vez, poupando-me as partes. O entrevero se deu no momento em que começou a se revelar inimigo da imprensa. Sim, ele começou a comer o jornal todo dia de manhã. Na ocasião eu assinava a Folha de S.Paulo, e talvez Cajango se imaginasse prestando um serviço ao picotá-la completamente. Num domingo, decidi que era hora de acabar com a ditabranda - e desci-lhe o sarrafo com um cone feito a partir dos restos da revista da Folha. Foi aí que aprendi a lição: não se usa a imprensa para atacar ninguém. Embora tenha registrado uma empresa em sua homenagem, Cajango Comunicação Ltda., descobri aos poucos sua peculiar e ilimitada capacidade de comunicar-se. Cajango é aquele caubói americano que bebe sozinho no balcão: ele sabe de tudo, tem um olho nas costas e uma alma velha. Jamais se prestará ao ridículo de dar a pata. Depois que ele me mordeu, entendi o recado: "Trate-me com carinho - ou meu ódio será sua herança." Passei a tratá-lo com carinho. Cajango jamais foi ao veterinário. Eu mesmo o medicava, às vezes aplicando umas injeções que entravam e saíam de sua couraça, fazendo o líquido esguichar direto no chão. Ele nem percebia - pai de 35 filhos, o bichão era duro na queda. Há um mês, no entanto, uma coisa estranha insurgiu de seu ventre: sua barriga foi crescendo como a pança de um Heráclito Fortes. Cajango foi ficando Fracos. Com 13 anos, teve de retirar o baço, tomado por 3 kg de tumor. Ainda assim sobreviveu: é um Renan Calheiros em forma de cachorro. Luta agora contra uma intoxicação no fígado, que precisa melhorar. Cajango sabe que eu estou escrevendo sobre ele. Calma, Cajango, eu direi para o pessoal: Cajango não tem medo de morrer.

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