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Caso S. põe leis de Haia em xeque

Aplicação de convenção internacional tem sido controversa pela difícil separação dos preceitos constitucionais

Por Alexandre Rodrigues
Atualização:

A batalha judicial entre o padrasto brasileiro e o pai americano por um menino de 9 anos, desde a morte da mãe brasileira, que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), põe em questão a aplicação da Convenção de Haia no Brasil. O acordo internacional firmado em 1980 para evitar o sequestro internacional por um dos pais foi incorporado pelo Brasil em 2000 (decreto 3.413/00), mas sua aplicação é controversa pela difícil separação dos preceitos constitucionais de soberania, de proteção à família e aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. O STF, no entanto, mantém em seu site um link para o texto da convenção e ações para a sua divulgação no meio jurídico, valorizando assim a legislação. O link aponta para textos do Grupo Permanente de Estudos sobre a Convenção de Haia de 1980, criado pela ministra Ellen Gracie em 2006. Ex-presidente do STF, ela é defensora do compromisso internacional do Brasil com a convenção e já foi cotada para a Corte de Haia. Entre os textos do site estão decisões judiciais que aplicaram a legislação. Um dos exemplos é justamente o caso de S.. Outra peça disponível no site é uma sentença do juiz federal Wilney Magno de Azevedo Silva, de março de 2007, da mesma 16ª Vara Federal do Rio, que na última segunda-feira determinou a volta de S. aos Estados Unidos. Numa decisão muito parecida à do juiz do caso de S., Rafael Pereira Pinto, o magistrado atende ao pedido dos advogados de um pai canadense, determinando a volta do filho que vive desde 2004 no Brasil com a mãe, que saiu com a criança do Canadá sem avisar . Esses advogados eram o padrasto de S., João Paulo Lins e Silva, e seu pai, Paulo, líder de uma das bancas de direito de família mais prestigiadas do Rio. O principal instrumento foi a Convenção de Haia. Apesar de confirmar sua atuação no caso, João Paulo diz que são dinâmicas diferentes. O voto do juiz federal José Antônio Lisboa Vieira, convocado ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, de 2007, mostra outra posição no processo em que Bruna Bianchi, a mãe do menino, venceu o pai americano, David Goldman, na primeira tentativa dele de repatriar o filho. A convenção prevê o retorno imediato de uma criança transferida para outro país sem consentimento de um dos pais, para que o juiz de sua residência de origem decida sobre a guarda. Uma das exceções é quando se passa mais de um ano e a criança está adaptada a um novo meio. No texto apresentado como exemplo no site, Vieira argumenta que, embora àquela altura S. estivesse no Brasil há mais de dois anos, Goldman havia recorrido à Justiça em 2004, meses depois de ela ter deixado os Estados Unidos. Segundo ele, esse é o prazo que conta, para não beneficiar o raptor com a lentidão da Justiça. QUEDA DE BRAÇO O caso de S. ganhou repercussão no Brasil e nos Estados Unidos em 2008, após a morte dramática da mãe no parto da segunda filha. O padrasto passou a reivindicar a paternidade socioafetiva do menino, levando Goldman a uma nova queda de braço judicial, com a adesão até da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. O último lance da trama foi na terça-feira. O ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liminar suspendendo a sentença que determina a repatriação de S. em 48 horas. O juiz caracterizou, segundo a Convenção de Haia, que o menino está sob "retenção ilícita" no País desde 2004 e a questão da guarda seria resolvida nos Estados Unidos. Mello, porém, aceitou o argumento do Partido Progressista (PP), que recorreu à dupla nacionalidade do menino para denunciar a remoção abrupta de um brasileiro sem o respeito a seus direitos fundamentais. Desde 2004, enquanto a Justiça discutia a competência para decidir o caso, S. viveu cinco anos no Brasil, onde criou laços com uma meia-irmã de oito meses. Além de ter encontrado no padrasto nova figura paterna, convive com os avós maternos. Separado do pai aos 4 anos, não consolidou laços com ele ou com tios e avós paternos. "Hoje em dia, não sei qual seria a pior situação. Determinar o retorno da criança é uma violência, mas não determinar também é uma violência", constata Carmen Tibúrcio, professora de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio (Uerj). Para ela, a culpa pelo dilema é da morosidade da Justiça. "Isso aconteceu porque não se respeitou uma regra clara. A visão de que o destino da criança brasileira só pode ser decidido pelo juiz brasileiro é equivocada", avalia Carmen. Ela frisa que a convenção não determina que a criança seja devolvida ao pai, mas ao país de residência habitual. "O juiz de lá é que vai ter condições de recolher provas dos dois lados. Essa é a ideia da convenção", afirma, acrescentando que Bruna poderia ter voltado aos Estados Unidos e, assim, conquistado a guarda legal do menino. Advogada especializada em direito de família, a ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Maria Berenice Dias concorda que a lentidão da Justiça complicou o caso, mas diz que o menino é o último a pagar por isso. "O STF deve privilegiar a questão socioafetiva que tem se desenhado nas varas de família." Para ela, o lado afetivo cada vez mais serve de apoio à Justiça, em lugar do legalismo horroroso da convenção. "Ninguém está olhando essa criança e seus sentimentos. Não podemos sacrificar um menino pelo medo de o Brasil sofrer retaliações políticas. Seria a situação mais perversa de todas", diz Berenice, referindo-se à posição da Advocacia-Geral da União pela volta do menino diante dos processos de regresso de crianças brasileiras do exterior sob o mesmo mecanismo. "Ao decidir um caso, atentar a um princípio constitucional não é descumprir o acordo internacional. Existe uma doutrina, exceções previstas na própria convenção, para isso." Carmen concorda, mas lembra que o interesse maior do menino pode não ser ficar no Brasil, mas a chance de conviver com a família americana. Para ela, deixar de aplicar a convenção pode significar um prêmio para quem separou ou manteve o menino longe do pai irregularmente. "Não se pode premiar um comportamento ilícito. A convenção fala em sequestro no título porque, sem dúvida, é uma conduta contrária à lei. Não é pelo passar do tempo e a utilização de vários recursos e subterfúgios que aquilo que era ilegal vai se tornar legal."

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