''Censura é mais grave que no AI-5''

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Por Fausto Macedo
Atualização:

Décadas de batalhas forenses sob alta temperatura não são suficientes para amenizar a perplexidade de Manuel Alceu Affonso Ferreira diante da ordem de censura que cala o Estado e tira de seus leitores o direito de acesso à Boi Barrica, a operação da Polícia Federal que aponta para Fernando Sarney, filho de José Sarney (PMDB-AP), presidente do Senado.Manuel Alceu, advogado do Estado, enfrentou muitos desafios na carreira. O Ato Institucional nº 5, por exemplo, que os generais impuseram a um País amordaçado, sem habeas corpus. Mas a censura decretada contra o jornal desde 31 de julho de 2009 choca o mundo jurídico, em especial a Manuel Alceu. "Porque ela provém do Poder, o Judiciário, de quem menos se esperaria cerceamento dessa espécie", diz. Quem deve cuidar da preservação do sigilo, afinal? A imprensa ou os órgãos públicos?Certamente não incumbe à imprensa a preservação desse sigilo. Esse dever diz respeito aos agentes estatais envolvidos com a investigação. Se a imprensa toma conhecimento da investigação em curso, quando a divulga apenas estará exercendo, regularmente e sem abuso algum, o seu direito constitucional de informar. Quando os fatos investigados constituem assunto de interesse público, mais do que apenas o exercício de um direito, ao divulgá-los os órgãos de comunicação cumprem uma sua elementar obrigação para com a cidadania.A ordem de silêncio completa um ano. Qual a sua avaliação sobre uma censura que tem respaldo da Justiça?A Constituição proíbe qualquer tipo de censura, pública ou privada, venha de onde vier, inclusive aquela oriunda do Judiciário. No STF, em reiterados votos os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio já evidenciaram o caráter ecumênico e abrangente, independente da eventual origem, da vedação à prática censória.Como vigora por tanto tempo a censura se a Constituição veta?É uma pergunta que permanentemente me faço para tentar compreender como será possível, no século 21 e no regime do Estado Democrático de Direito, aceitar uma censura judicial que perdura há um ano. E a única resposta eu a encontro na comprovação, mais uma vez, da dificuldade burocrático-processual em se desfazer um erro judiciário, por mais clamoroso e evidente que seja, como no caso é.O sr. acredita que a liberdade será devolvida ao jornal?Não tenho dúvida de que algum dia, oxalá o mais próximo possível, o jornal terá resgatada, pelo próprio Judiciário, a sua liberdade noticiosa. E a minha estratégia será aquela à qual os advogados estão acostumados quando agregam as duas "ências": a insistência e a paciência... Não há outro caminho.Como advogado do Estado, o sr. enfrentou a censura imposta pelo AI-5. A censura judicial é pior que a dos anos de chumbo?Sim, penso que a censura de hoje é mais grave do que aquela, que bem conheci. Mais grave porque ocorre em pleno regime das franquias constitucionais. Contudo, também mais grave porque a de hoje provém do Poder, o Judiciário, de quem menos se esperaria cerceamento dessa espécie. O agente da censura não compareceu à Redação e não exibiu armas. Mas, o que para mim é muito pior, liminarmente vetou a informação por simples despacho na comodidade de um gabinete forense.Liberdade de imprensa ou direito à intimidade?Ambos, liberdade de imprensa e tutela da privacidade, são valores constitucionais. A conciliação entre eles, ensinam os juristas, ocorrerá sem o aniquilamento de nenhum deles e a partir de um juízo equitativo de ponderação e razoabilidade. Aquilo que a Constituição protege é a privacidade irrelevante para o interesse coletivo. Muitos outros veículos de comunicação, de acordo com levantamento oficial, estão sob censura por ordem judicial. O País corre o risco de um retrocesso?No voto-relator que levou à abrogação da Lei de Imprensa de 1967, o ministro Carlos Ayres Britto demonstrou, com o costumeiro talento, o risco que a imprensa brasileira passou a correr desde a ampliação daquilo que já se cunhou como "censura judicial". E já que a censura pelo Executivo felizmente ficou na não-saudade, e aquela que poderia advir do Legislativo conta, em seu desfavor, com a possibilidade de um prévio contraditório deflagrado pela opinião pública, é razoável, sim, temer-se o retrocesso da censura judicial. A esperança, já reforçada em alguns precedentes, reside no controle corretivo-recursal a ser implementado pelos tribunais.O que leva juízes a aplicarem a mordaça?A meu ver, um equivocado entendimento a respeito do que consta da Constituição, e do novo Código Civil, quanto à possibilidade de impedir a "ameaça" de lesão aos direitos da personalidade. Esquecem-se esses magistrados, no entanto, que a informação e a opinião são direitos inalienavelmente conferidos à imprensa.Por que se arrastam os recursos do jornal ao STJ e ao STF?É o velho problema da lentidão judicial, que não é culpa dos juízes, nem dos promotores, nem dos advogados e, muito menos, das partes. Esse é um dos mais complexos problemas da estrutura judicial brasileira.Nesse ano de batalha, o sr. verificou mudança nos tribunais em relação ao fantasma da censura?O caso do Estado é emblemático e por isso mesmo vem alcançando tanta repercussão. Caso não tivesse outros méritos, teria valido por chamar a atenção da sociedade para a importância da permanente vigilância em torno da liberdade de imprensa e seus benefícios. Quem é a vítima da censura?Sempre que um jornal é censurado não se ofende apenas ao direito da empresa. Ofende-se, também, ao outro componente indissociável da liberdade de imprensa: o direito à informação de que gozam os leitores.

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