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Caso Mariana Ferrer: CNJ abre processo disciplinar contra juiz por permitir 'tortura psicológica'

Em sessão sobre denúncia de estupro, defensor do réu lançou uma série de ataques e acusações contra a jovem e não houve intervenção do magistrado

Por e Fábio Bispo
Atualização:

BRASÍLIA e FLORIANÓPOLIS - A Corregedoria Nacional de Justiça abriu procedimento disciplinar nesta terça-feira, 3, para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina, que presidiu audiência de julgamento de um processo de estupro e permitiu que o advogado do réu atacasse a jovem de 23 anos que fez a denúncia. A seccional local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também notificou o defensor, Cláudio Gastão da Rosa Filho, para investigar possíveis desvios éticos do profissional. O empresário acusado de abuso sexual foi inocentado.  

Juiz Rudson Marcos Foto: Esmesc/YouTube

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A influenciadora digital Mariana Ferrer alega ter sido dopada e estuprada no camarote VIP de um beach club em Jurerê Internacional em dezembro de 2018. O empresário chegou a ser denunciado pelo Ministério Público e teve pedido de prisão temporária aceito pela Justiça, mas que acabou suspenso em segunda instância.

A decisão da 3ª Vara Criminal de Florianópolis que inocentou o empresário André Aranha da denúncia de estupro é de 9 de setembro, e o caso ganhou repercussão nesta terça-feira após o site The Intercept Brasil divulgar detalhes da sessão de audiência onde advogado Gastão insultou a jovem. Com o argumento de que a relação foi consensual, a defesa do empresário exibiu, na audiência, fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, e sem qualquer relação com o fato. O advogado de Aranha, Cláudio Gastão, chegou a dizer que a menina tem como “ganha-pão” a “desgraça dos outros”. Apesar das intimidações, o juiz não repreendeu.

Em determinada altura da audiência, a jovem chegou a implorar ao magistrado por respeito. “Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”.

O pedido de investigação na corregedoria, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), partiu do conselheiro Henrique Ávila. Em ofício enviado à corregedoria, ele classificou as imagens como “sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual”. “Causa-nos espécie que a humilhação a que a vítima é submetida pelo advogado do réu ocorre sem que o juiz que preside o ato tome qualquer providência para cessar as investidas contra a depoente. O magistrado, ao não intervir, aquiesce com a violência cometida contra quem já teria sofrido repugnante abuso sexual”, disse Ávila, que também destacou o fato de a vítima reclamar de um tratamento que não é dado nem a acusados de crimes hediondos. 

Entre as punições que podem eventualmente ser aplicadas pelo CNJ ao juiz estão advertência, censura, remoção compulsória, aposentadoria compulsória e demissão. 

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina disse apenas que também abriu investigação interna para apurar a conduta do magistrado na audiência.

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A denúncia foi oferecida em julho de 2019 pelo promotor Alexandre Piazza, que deixou o caso após transferência voluntária. O promotor Thiago Carriço, que assumiu o caso, considerou jurisprudências apresentadas pela defesa apontando para falta de dolo (intenção). 

“Em que pese haver registro de possível recusa da vítima, tal se deu após a prática da relação sexual ou libidinosa, quando a vítima manda mensagem para uma amiga informando que ‘não queria esse boy’ ou quando a vítima, já em casa, relata não ter consentimento em praticar qualquer ato sexual.” 

Para o MP, “não há “indicação nos autos acerca do dolo”, uma vez que a vítima não aparentaria estar fora de seu estado normal, “não afigurando razoável presumir que soubesse ou deveria saber que a vítima não deseja a relação” - linha de defesa que o Intercept chamou de “estupro culposo”, tipo jurídico que não existe na legislação brasileira. 

Defesa e MP sustentaram que a jovem estava consciente durante o ato sexual - e não sob forte efeito de drogas -, portanto não haveria estupro de vulnerável. E também que não teria sido provado que o empresário tentou embriagar a jovem. O juiz concordou que não poderia ser caracterizado como estupro de vulnerável. O MP disse, porém, que a absolvição não foi baseada no argumento de ‘estupro culposo” (sem intenção), mas “por falta de provas de estupro de vulnerável”. 

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Em nota, o advogado Gastão disse que os fatos “foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais”, que apontaram “relação consensual” e “foi atestado que ambos estavam com a capacidade cognitiva em perfeito estado”, conforme “peritos”. Não comentou os ataques à jovem na audiência. Disse ainda que “estupro culposo” “não é terminologia jurídica”, e que em nenhum momento o termo foi utilizado pelo juiz. Ele foi notificado pela OAB para dar esclarecimentos. 

O advogado da jovem, Julio Cesar Fonseca, disse não poder comentar pelo segredo judicial, mas disse ter recorrido. Ele assumiu após a audiência. 

Ministro repudiam episódio e cobram apuração

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O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que as cenas "são estarrecedoras". "O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram", disse o magistrado nas redes sociais.

O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas também repudiou a maneira como a audiência de julgamento foi conduzida. "Poucas vezes vi algo tão ultrajante. Especialistas em Direito Penal certamente falarão com propriedade sobre a tese do estupro culposo, que confesso desconhecer. O vídeo é aviltante e dá impressão de que não havia juiz presidindo a audiência ou Promotor fiscalizando a lei. Havia?", escreveu ele.

 

Nota do Ministério Público de Santa Catarina

A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.

Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso,a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.

Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de "estupro culposo", até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.

O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.

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Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do Advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.

O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente.