Com Espinosa, no Peixoto

O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza passeia pelo bairro onde vive seu delegado, personagem de sete livros

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Por Anelio Barreto
Atualização:

O delegado Espinosa está sentado lá, naquele banco de madeira da Praça Edmundo Bittencourt - que todos chamam simplesmente "a praça" - no Bairro Peixoto, em Copacabana, Rio de Janeiro. Vive ali desde os 9, 10 anos de idade, e jogou na quadra de futebol de salão onde outros garotos correm agora, na pérola que é o Peixoto ainda hoje, mas que brilhava mais décadas atrás, quando um grande bambuzal ainda germinava em um de seus cantos. Foi onde Espinosa conheceu Hugo Breno, um ano mais novo, e com quem brincou, embora recentemente tivesse de fazer esforço para se lembrar dele. Os leitores já perceberam: o delegado Espinosa é criação do escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza e está em sete aventuras nos sete livros em que é personagem - o mais recente, Na Multidão, foi lançado em novembro pela Companhia das Letras e, poucos dias depois, teve esgotada sua primeira edição, de 10 mil exemplares. Companheiro na adolescência, Hugo Breno reaparece nesse volume. Garcia-Roza já foi editado em Portugal, Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Alemanha, Rússia e Grécia e está em vias de ser lançado na Dinamarca. Uma ressalva: Espinosa não vive só para seu criador, mas também para todos os milhares de leitores que conquistou e procuram por ele nos lugares que freqüenta nos livros, mas que são reais, estão ali, no Peixoto e em Copacabana, leitores que chegam perguntando "Ele já passou por aqui hoje?" Espinosa-Garcia-Roza levanta-se do banco da praça, e estamos diante do homem alto, magro, de fala cansada - o delegado que o escritor descreveu apenas assim, também pela única vez, em seu primeiro livro, O Silêncio da Chuva, de 1996. "Nunca disse sequer se Espinosa é preto ou branco", explica ele. Garcia-Roza é magro, tem apenas um incipiente volume que os 72 anos colocaram em sua cintura, é relativamente alto para o padrão brasileiro, mas esqueçam a fala cansada: sua voz, grave e alta, revela o vigor de uma pessoa determinada que já foi professor e escritor nos campos de Filosofia e Psicologia e, 12 anos atrás, resolveu dedicar-se à literatura policial. AMBIENTE Se Espinosa jogou bola em sua infância, ali no campinho, o mesmo não aconteceu com Garcia-Roza: ele jogava em outro campo, não muito distante daqui, mas a praça do Peixoto era presença constante. - Passei toda a minha infância em Copacabana. Meninos, eu e meus amigos vínhamos andando de bicicleta até aqui, que era um local maravilhoso, uma grande área natural, e a gente andava de bicicleta por tudo, o que me deu uma grande intimidade com o lugar, não só a praça, mas todo o entorno. Então escolhi o Bairro Peixoto como moradia do Espinosa. Já havia decidido que ele seria um personagem que atravessaria vários livros - claro, isso se fossem publicados, mas eu já tinha um certo otimismo em relação a ele. O Bairro Peixoto, encravado em Copacabana, fica entre o Morro dos Cabritos e o Morro São João, no espaço compreendido pelas Ruas Henrique Oswald, Santa Clara e Lacerda Coutinho, a Ladeira Tabajaras e a Rua Tonelero. Segundo a Associação dos Amigos do Bairro, são aproximadamente 440 prédios e 9 mil moradores. Em qual dos prédios, nesta praça, moraria o Espinosa? - Pois é - diz Garcia-Roza, rindo -, eu limito um pouco as possibilidades. Digo que ele mora num apartamento com janela francesa, o que já é bastante limitador, e é um prédio de três andares. Então, três andares, janela francesa, um balcãozinho... - É aquele. - Pois é, mas é quase... Na verdade, nenhum prédio daqui preenche todos esses requisitos. Mas este, o amarelinho, é muito parecido. É o de número 396 da Rua Maestro Francisco Braga, em frente à praça, amarelo claro de três andares e grandes janelas. A que está mais aberta, à esquerda de quem olha, seria a da sala de Espinosa, através da qual Hugo Breno observa o delegado em Na Multidão. Hugo Breno, o duplo de Espinosa. - Ele é um duplo forçado, né? - diz Garcia-Roza - Porque o Hugo Breno se espelha, é um processo de identificação doentio, desde menino, é uma identificação, uma idolatria, a relação que ele tem com Espinosa é especular. Tanto que Espinosa faz concurso para a polícia, ele faz concurso para o banco, Espinosa descasa, ele não casa, ele fica na frente do espelho imitando gestos e palavras... De maneira que ele é um duplo. Espinosa e Hugo Breno travam uma batalha verbal a cerca de cem metros daqui, na Rua Décio Vilares, 316, no simpático Hotel Santa Clara, um prédio pequeno, de três andares, fachada combinando o branco e o azul num estilo bem típico do Bairro Peixoto. O nome Santa Clara não é citado no livro, mas Garcia-Roza confirma que o palco foi este e conta que já se hospedou no hotel duas vezes, quando procurava sentir o movimento do Peixoto atual. Na terça-feira, 15, ele voltou lá à procura de Heber Brandão, o gerente, levando-lhe um livro com dedicatória. No hotel há um quadro com a reprodução de um texto jornalístico sobre Espinosa, o que atrai a atenção dos hóspedes. Heber conta: - Eles perguntam quem é, se mora no bairro, se está hospedado aqui. ORIGEM O leitor saberá mais da relação Hugo Breno-Espinosa no livro de Garcia-Roza. Que conta agora como escolheu e moldou seu personagem. - Espinosa nasceu de uma série de "nãos". Quando eu parei de escrever livros conceituais, de teoria, acadêmicos... Eu disse que o dia em que conseguisse parar com isso tentaria a ficção. E mais: eu começaria com ficção policial. Teria a Psicologia levado Garcia-Roza a escolher o gênero policial? Não se pode dizer que não. "Acho que é possível fazer uma relação entre a novela policial e a prática psicanalítica, num sentido amplo", disse ele em uma de suas entrevistas. "Primeiro, ambos são o exercício da suspeita. Você parte da suspeita de uma recusa do óbvio, que no caso da psicanálise é o que o paciente conta como um relato consciente, e, a partir da recusa disso como contendo a verdade, você vai, através das falhas, das fendas e das hesitações, ou seja, nos interstícios deste discurso, vai procurar o que seria o significante inconsciente ou aquilo que seria a manifestação do inconsciente. Você parte de certos fragmentos para procurar algo que não é aquele discurso, é outra coisa. Também a investigação policial é feita a partir de fragmentos para descobrir o que seria um outro registro, que é o plano do crime propriamente dito. Nesse sentido, acho que há certa analogia entre prática psicanalítica e prática policial." Voltando à criação de Espinosa: - Mas eu pensava: como fazer ficção policial num país em que a polícia, desde o tempo em que eu era menino, no tempo daquela polícia especial do Getúlio, do Filinto Müller, os policiais eram trogloditas, de uma violência extraordinária? Eles prendiam, torturavam, faziam o diabo. E até bem recentemente a polícia era assim, repressora, grosseira e, acima de tudo, corrupta. Então eu me perguntava: como fazer romance policial num país assim? Quem é que vai ter um mínimo de simpatia pelo personagem? Bem, então achei que a chance era fazer do meu personagem um detetive particular. Ficou pior ainda, porque não há nenhum espaço para detetive particular nessa cultura nossa. Seria risível. Bem, então não tinha jeito, teria de ser policial. Aí resolvi criar um personagem que, antes de qualquer coisa - antes de ser forte, bonito, bater, dar tiros -, teria de ser íntegro, ético. E que fosse um homem comum, não precisava ser um super-herói. Ele, apenas sendo ético e eficiente, poderia criar uma imagem simpática de um policial que fosse parte do aparelho do Estado. Isso foi em 96, por isso já tínhamos uma década de alívio em relação à ditadura e, portanto, já se poderia tentar modificar um pouco a figura do policial na ficção. E o Espinosa surgiu daí, não havia outra saída. Garcia-Roza já disse, e repete, que não se baseou em nenhum herói existente para criar seu personagem. Não houve qualquer inspiração, mesmo porque, costuma dizer, não acredita em inspiração. Por isso não há semelhança com Philip Marlowe, de Raymond Chandler, nem com Sam Spade, de Dashiell Hammett, nem Nero Wolfe, de Rex Stout. Fisicamente, ele ficou naquelas poucas palavras em O Silêncio da Chuva: magro, alto, com 42 anos. Mas esse é você, Garcia-Roza. Ele ri. - Mas eu não tinha 42 anos (mais risos). Criei uma figura que era feita mais de lacunas do que de traços delineados, e isso foi de propósito. Eu deixei que o leitor fosse preenchendo essas lacunas e eu mesmo fui, aos poucos, dando elementos para esse preenchimento. A cada livro, acrescento mais alguma característica, mas nunca com o intuito de, no fim, ter um desenho acabado dele. Uma curiosidade de Espinosa que precisa ser contada: sua estante de livros. Espinosa lê muito, adora procurar preciosidades em sebos, costuma acumular livros pelo apartamento, para desespero da arrumadeira. Então resolveu improvisar uma estante, assim descrita: "Uma curiosa estante sem prateleiras, arrumando os livros em pé junto à parede e formando fileiras separadas uma das outras por livros deitados. A pilha atingia a altura da cintura e ocupava a única parede livre da sala". De onde tirou ele a idéia? - Tive uma experiência pessoal com aquilo - conta, divertindo-se - Uma vez, precisei juntar um monte de livros meus, e a idéia que tive foi aquela. Curiosamente, tempos depois, ao folhear uma revista de decoração, vi a foto de uma estante como aquela. Veja, é um pouco complicado na hora de retirar um livro, mas funciona. PROMOÇÃO Quando surgiu, em sua primeira aventura, Espinosa era inspetor da 1ª DP, na Praça Mauá, centro do Rio. Hoje, é delegado titular da 12ª DP, em Copacabana. A transferência e a promoção foram por motivos estratégicos, explica Garcia-Roza, e por motivos estratégicos entenda-se salário. Ele se deu conta de que, com o salário de inspetor ou de detetive, Espinosa não poderia ter o tipo de vida que tinha, ele precisava de um salário um pouco melhor. Aqui na 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia, 102, o delegado titular é uma mulher, Martha Mesquita Rocha, que substituiu outra delegada, Monique Vidal. Para Garcia-Roza, a presença feminina na polícia é um dos motivos que estão provocando uma mudança - para melhor - na imagem dos policiais. Hoje em dia, ele considera, delegados íntegros e éticos como seu personagem estão mais presentes nas delegacias. E ele fala de uma conversa que teve com um delegado que citou filosofia grega usando termos gregos. Garcia-Roza é logo reconhecido, na portaria da 12ª DP, por uma senhora que está ali em busca de alguma informação. É uma ex-aluna, que logo se aproxima e o cumprimenta pelo sucesso de seus livros e de seu personagem. É cumprimentado também pela simpática senhora Bia, do restaurante Baalbek, na Galeria Menescal, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Este é o restaurante, o árabe, em que Espinosa passa sempre para comprar seus quibes e suas esfihas. A Galeria Menescal, trajeto do delegado a caminho do Peixoto, ainda conserva suas paredes e pisos em mármore italiano e é tombada pelo Patrimônio Histórico. Entre essas paredes está, há 50 anos, o pequeno espaço do restaurante, hoje, na verdade, apenas uma loja em que são servidos seus produtos. Bia sorri, entrega logo um de seus quibes a Garcia-Roza e pergunta: "Ele esteve aqui, não, com o duplo?". Sim, Hugo Breno e o delegado estiveram lá. E ela acrescenta: - As pessoas chegam aqui perguntando: "Ele já passou por aqui hoje?". Na trattoria, a trattoria já famosa para os leitores, as pessoas também perguntam por Espinosa. É uma casa tipicamente italiana, La Trattoria, na Rua Fernando Mendes, quase esquina com a Avenida Atlântica. Ali, o delegado costuma almoçar ou jantar, na maior parte das vezes sozinho, mas também acompanhado da equipe, quando então, durante as refeições, é proibido falar de trabalho. Espinosa ocupa uma mesa que fica à esquerda de quem entra, é a última daquela ala, encostada à janela. A casa foi fundada pelo senhor Mario Pautasso, hoje com 77 anos. E que, assim que Garcia-Roza entra, pergunta: "Cadê o Espinosa? Taí?". E conta que lançou um prato em homenagem a ele, o Risoto de Bacalhau à Delegado Espinosa, que explica como sendo arroz, bacalhau desfiado, bastante azeite e um pouco de petit pois. Que fez sucesso, acrescenta. - Quando entram aqui, muitas pessoas perguntam logo qual é a mesa dele. Em seu livro mais recente, Na Multidão, Garcia-Roza cita uma obra de Edgar Allan Poe, O Homem das Multidões, e dela retira uma epígrafe. Teria ele se inspirado em Poe? Não, responde. E diz que foi ao conto de Poe depois que decidiu usar como tema o homem que se perde na multidão. A questão que tinha é a de que há pessoas que, quando angustiadas, precisam ir a um lugar onde haja muita gente. Precisam da multidão para se encontrar. Então, diz, foi ao Poe, como também a Walter Benjamin, para ver o que eles teriam a oferecer. Conta que faz isso raramente, até porque prefere não ler autores que estejam ligados à temática que está abordando. - Eu não acredito muito nessa história de inspiração, não. Esse negócio de que de repente baixou um... Acho que existe um processo de feitura do texto que tem um outro processo, subterrâneo, no qual o texto continua sendo elaborado; ele não continua sendo escrito, mas continua sendo elaborado na sua cabeça, tanto que você às vezes acorda no meio da noite com uma idéia. Não é que baixou inspiração, é que aquilo ali já estava sendo produzido. A epígrafe retirada do conto de Poe é "A essência de todo crime permanece irrevelada". O que Garcia-Roza tem a dizer sobre ela? - Ela é apenas aparentemente óbvia, tanto que já vi interpretações as mais bizarras. É no sentido de que o crime, sobretudo o homicídio, ultrapassa, e muito, o ato de matar o outro. O que leva alguém a matar? Isso vai desde o matador profissional, que mata com sangue frio, até o assassinato sob extrema angústia. De modo que a complexidade de um crime ultrapassa em muito a banalidade de se descobrir quem matou e a prisão de quem matou. Quando você descobre quem matou, você descobre um aspecto, uma fatia da questão. E do ponto de vista policial pode ser o ponto final: a polícia se propõe a descobrir e prender quem matou fulano. Mas e a motivação do cara que cometeu o crime? O que motivou o assassinato? Em suma: o crime ultrapassa em muito a questão do "whodunit?". A essência de todo crime permanece irrevelada, como disse Poe, porque o criminoso pode ser preso, mas não revelar seus motivos. O crime, sobretudo o homicídio, é de extrema complexidade psicológica, às vezes resulta da própria interioridade. NOVA AVENTURA Espinosa já está vivendo outra aventura. Garcia-Roza conta: - Estou na fase muito inicial. Ainda definindo personagens, pelo menos os principais, e mais ou menos dando uma direção à história. Mas ainda não tenho um plot definido, não tenho a estrutura da história. Tenho só uma direção, que é uma coisa vaga. Às vezes, começo fazendo isso e tomo um caminho completamente diferente. O que posso dizer é que é com Espinosa em um espaço mais amplo do que o Bairro Peixoto e entorno... Enfim, há algumas mudanças no personagem Espinosa, mas nem essas mudanças estão definidas. Haverá uma mudança em relação a ele que é uma exigência minha, de introduzir algumas modificações significativas, de modo que me dê mais liberdade, e ao Espinosa, também. Posso dizer que estou dando ao Espinosa uma espessura histórica maior, uma historicidade maior, ele está ganhando uma história pessoal.

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