Com ‘tecnologia revolucionária’, Lutero se transformou em 1.º ícone midiático

Guerra dos panfletos e publicação inédita de livros em línguas locais popularizaram imagem e teses de alemão, também marcado por sua intransigência e polêmicas

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Por Jamil Chade
Atualização:

WITTENBERG – A Reforma Protestante jamais teria ocorrido se, antes, a imprensa de Gutenberg não tivesse sido criada. Historiadores e teólogos consultados pelo Estado revelam que, ainda que a nova tecnologia tenha sido criada sete décadas antes, Martinho Lutero foi um dos primeiros “revolucionários da mídia” e a soube usar como poucos.

Na guerra dos panfletos, aliados e opositores deLutero proliferaram publicações, ataques e sátiras Foto: Jamil Chade/ESTADÃO

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Hoje, a exposição que marca seus 500 anos conta com um cartaz que dá a dimensão de seu poder de comunicação. Ao lado de imagens de Lutero em seus momentos mais decisivos, um pássaro azul – símbolo reconhecido de uma rede social – o observa atentamente. 

“Lutero teria usado o Twitter e o Facebook de uma maneira exaustiva se as redes existissem”, analisa o escritor e curador da exposição, Benjamin Hasselhorn. “Ele tinha um desespero enorme por fazer chegar suas convicções aos fiéis”, comentou. 

Só a difusão de suas ideias é que o garantiu vivo e permitiu o cisma. Wittenberg, naquele momento, contava com apenas 2,5 mil habitantes. Lutero sabia disso. Outras tentativas de reformar a Igreja haviam fracassado por causa da falta de um apoio das massas e de uma repercussão que não ia além de uma pequena região. 

Ao comentar o poder da imprensa, Lutero apontou que “seus benefícios não podem ser explicados apenas por palavras”. “Por meio dela, as escrituras estão abertas e espalhadas em todas as línguas e preservada aos descendentes”, disse. 

Até 1500, cerca de 27 mil livros haviam sido publicados na Europa. Com o desembarque da polêmica de Lutero, esse número se multiplicou. Mesmo a proibição de que suas obras circulassem a partir de 1519 não freou sua proliferação. 

Um dos motivos era o novo formato que ganhara espaço: os panfletos. Livros pequenos, baratos e capazes de serem levados no bolso. Verdadeiros instrumentos de propaganda, eles serviram como meio para que Lutero explicasse, em alemão, a doutrina da Igreja e publicasse textos bíblicos. Entre 1517 e 1524, o número de livros publicados aumentou em dez vezes e Wittenberg passou a ser responsável por 15% de todos os novos títulos lançados na Alemanha. 

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A estratégia de Lutero era de que suas teses deixassem a esfera dos teólogos e autoridades. Para isso, traduziu sua proposta ao alemão e, rapidamente, a imprensa o transformou em panfletos. Junto com eles vieram milhares de apoios. 

A velocidade das publicações e de sua disseminação ao norte da Alemanha se contrastava com a dificuldade e o tempo de se fazer chegar uma carta de Wittenberg até a Santa Sé, em Roma. Enquanto meses foram necessários para que o Vaticano soubesse o que exatamente tinha ocorrido e ordenar sua excomunhão, em 1519 o movimento contestatário já havia estabelecido sua fundação. 

Novo Testamento, traduzido ao alemão por Lutero Foto: Jamil Chade/ESTADÃO

Mesmo escondido para não ser morto e protegido por um dos príncipes, Lutero manteve seu maior projeto literário: traduzir a Bíblia ao alemão. Doze anos depois e com mais de mil páginas, a primeira Bíblia na língua local chegava ao mercado. Para a história do cristianismo, ela foi um divisor de águas, permitindo que a população pudesse ter acesso direto à palavra de Deus. Sem passar por alguém que a interpretasse. Para isso, Lutero teve de a escrever de uma forma acessível e até inventar palavras. 

O golpe funcionou. Em apenas três meses, 3 mil cópias foram vendidas, o que na época foi um best-seller. Imediatamente, novas edições foram realizadas, que voltaram a se esgotar. 

O impacto ainda foi sentido na formação de uma nação. Pela primeira vez, um livro para as “massas” teve a capacidade de unir as diferentes regiões que, até então, falavam diferentes dialetos. Assim, a bíblia de Lutero consolidou o alemão como língua nacional. 

Ícone

Apenas publicar não era suficiente. Lutero precisava de um interlocutor de poder para que o debate ganhasse uma dimensão maior. Sua estratégia foi a de enviar suas teses não aos padres locais. A carta em que ele questiona a Igreja em 1517 é endereçada a Albrecht de Brandeburgo, o máximo representante. 

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Também em uma estratégia de comunicação, ele mudou seu nome. Na carta de 31 de outubro, Martinho Luder – seu nome original – se transforma em Martinus Lutherus. O sobrenome seria uma palavra criada a partir do grego Eleutherios, “aquele que foi liberado por Deus”. 

Primeiro ícone midiático, Lutero teve seu retrato realizado em 80 ocasiões durante sua vida, algo inédito para a época Foto: Jamil Chade/ESTADÃO

Com o tema saindo da esfera religiosa e se transformando numa questão de insubordinação diante das autoridades, aliados de Lutero ainda colocaram em circulação panfletos com imagens explicando e denunciando os papas da época. 

Não demorou para que aquele movimento alimentasse uma revolta dos campesinos locais em 1525, que publicaram reivindicações ao mesmo estilo de Lutero pedindo o fim do trabalho forçado. O movimento levou à destruição de dezenas de monastérios e o assassinato de monges e freiras. Para a surpresa dos pequenos agricultores, o reformador os abandonou e fechou seu apoio aos príncipes. Lutero chegou a escrever contra os rebeldes e pediu sua morte, o que acabou ocorrendo. 

Odiado por muitos e venerado por outros tantos, Lutero ainda causou polêmica ao se expressar de forma dura contra os judeus e os atacar. 500 anos depois, um dos poucos partidos de extrema-direita da Alemanha, NPD, usou nas eleições de 2017 a imagem de Lutero insinuando que ele seria a base de parte do pensamento neonazista, algo que historiadores negam. 

Mas a imprensa em 1517 também foi usada para o atacar. Satirizado, livros passaram a espalhar o rumor de que Lutero havia sido dominado por Lúcifer ou criticar seu estilo de vida e intolerância aos que o questionavam. 

Na guerra dos panfletos, aliados e opositores deLutero proliferaram publicações, ataques e sátiras Foto: Jamil Chade/ESTADÃO

Houve ainda a censura, inclusive de príncipes que eram seus aliados. Uma das primeiras reproduções do rosto do jovem monge Martinho acabou sendo proibida pelo príncipe Frederico e encontrada apenas depois de sua morte. Nela, o reformador aparecia com um rosto determinado e uma calma de quem sabia o que estava fazendo. O motivo da censura: seu carisma o transformara em militância, algo perigoso para os monarcas. 

Mas o resultado foi uma popularidade cada vez maior do monge insubordinado. Sua imagem passou a fazer parte das publicações e, para historiadores na Europa, Lutero foi o primeiro “ícone midiático da modernidade”. Em mais de 80 retratos, ele foi apresentado como cavaleiro em armas ou como um iluminado. 

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Queimando livros católicos em praça pública ou adotando posições polêmicas para a época, a vida de Lutero passou a ser acompanha de perto. 

Para historiadores, ele se considerava como um profeta e, ao longo de sua reforma, a mudança que ela promoveria na sociedade não se limitaria ao destino das almas. Com o fim da relação com o Vaticano, as igrejas passaram a ter de se organizar localmente, com seminários aos religiosos, com o abandono de centenas de pessoas de instituições católicas, com a transformação até das finanças. 

No programa escolar, Lutero passou a defender o ensino do pensamento de Aristóteles e o fim de dezenas de feriados relacionados a santos. 

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