''Decisão rápida nem sempre é boa''

Responsável pelo caso da menina austríaca que morreu no Rio, ele diz que aplicação da Convenção de Haia não é automática

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Por Redação
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A morte da menina austríaca Sophie, de 4 anos, no Rio, aparentemente vítima de maus-tratos, enquanto o pai tentava repatriá-la, somou-se ao caso do menino S., de 9, disputado pelo padrasto brasileiro e o pai americano, na controvérsia que envolve a aplicação da Convenção de Haia contra o sequestro internacional de crianças. O tratado prevê retorno imediato de menores que deixaram seus países sem autorização de um dos pais, mas os processos judiciais têm se arrastado no Brasil. Para o juiz federal José Carlos Zebulum, da 27ª Vara Federal, não é possível decidir rapidamente sobre casos tão complexos. Responsável pelo caso de Sophie e do irmão dela, ele não pode falar sobre o processo por causa do sigilo judicial, mas aceitou analisar o dilema dos juízes. Por que os juízes brasileiros demoram tanto para aplicar a Convenção de Haia, que pretende ser um instrumento ágil? Nem sempre uma decisão rápida é uma decisão boa. O processo tem um trâmite normal e os da Convenção de Haia exigem ainda mais cuidado. Está em jogo o futuro de uma criança. Antes dos direitos e interesses do pai ou da mãe, a prioridade deve ser o futuro da criança. O juiz tem de se cercar de todos os subsídios sobre o bem-estar da criança. Antes da Convenção de Haia, essa é uma orientação constitucional. Normalmente, são processos carregados de acusações de ambas as partes, como a de maus-tratos, que podem não ser verdadeiras. O juiz não pode decidir sem avaliar tudo. As consequências são muito mais graves do que num caso de família comum. Quando os pais vivem no mesmo país, há as visitas. Na convenção, quando dou a guarda a um, estou afastando a criança do convívio com o outro. Juristas argumentam que não é competência do juiz brasileiro atuar na guarda, mas apenas na caracterização do sequestro internacional. Pela convenção, a decisão da guarda seria do juiz do local de onde a criança foi retirada e por isso o retorno deve ser imediato. Há confusão de atribuições? Nossa Constituição tem como um de seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana. Qualquer que seja a matéria, esse deve ser o norte. Jamais posso esquecer que, embora haja um tratado internacional, o processo envolve pessoas e relação familiar. Uma criança, um pai, uma mãe. Não posso aplicar automaticamente a convenção, como se fossem mercadorias. O juiz, por imposição da Constituição, tem responsabilidade também com esses aspectos. A Advocacia-Geral da União diz que o Brasil pode sofrer retaliações se não cumprir o tratado. Isso pesa na decisão do juiz? Não. É claro que o tratado faz parte do nosso ordenamento, mas há também a Constituição, as nossas leis. Não é possível afastar nosso sistema jurídico, que determina uma série de cuidados em relação à criança e ao adolescente. E isso não é desrespeitar o tratado. A própria convenção determina que o juiz pondere. Se fosse algo automático, por que passar pelo juiz? Poderia ser resolvido pelo Itamaraty, por exemplo. A Justiça está atenta às consequências que a demora dessa decisão pode representar para as crianças? No caso da menina austríaca, houve uma tragédia. No de S., ele se afeiçoou ao padrasto e uma eventual separação poderá ser um trauma. Não é possível acelerar? Existe um trâmite legal que não pode ser desrespeitado. Há o prazo para que as partes e o Ministério Público se manifestem. Se o juiz desrespeitar isso, mesmo na melhor das intenções, vai levar à nulidade do processo. Existem situações que escapam do controle do juiz. Já tive casos em que o pai não sabe onde a mãe está. Ela tem de ser citada, mas não é encontrada. Como o juiz pode decidir sem isso? É fácil dizer que a Justiça é lenta, mas é preciso ver com cuidado. Aceleramos o que é possível, mas não podemos suprimir etapas. De que forma a criança deve ser ouvida? Numa audiência ou por psicólogos? Os dois. É importante que o juiz tenha contato com a criança, tendo o cuidado de ouvi-la separadamente para que não sofra constrangimento diante dos pais. Isso, sem prejuízo de uma entrevista com psicólogos. À luz de sua impressão pessoal e do laudo psicológico, o juiz terá base para decidir. O desejo da criança, na sua avaliação, tem que peso? Muito alto. Não é o único, são vários os fatores, mas, quando a criança diz que quer ficar com o pai ou com a mãe e mostra segurança, o peso é muito alto. Nas relações afetivas, vale muito. A pessoa que retém a criança leva vantagem sobre a outra parte, já que pode influenciá-la no convívio. Se isso prevalece, deixar a criança com quem a afastou do outro genitor não pode estimular sequestros? Aí há a necessidade da perícia, para mostrar até que ponto a criança está sendo influenciada, submetida a lavagem cerebral. É comum a criança vir a juízo orientada a acusar o outro pai. Por isso é muito importante essa orientação técnica de que o juiz não dispõe. Muitas vezes a disputa vem de um relacionamento conturbado, onde chovem acusações, numa guerra de direito subjetivo dos pais, quando o que tem de ser verificado é o melhor para a criança. Se o processo é rápido, isso pode passar despercebido. Por mais ansiosos que estejam os pais, o juiz não pode ser pressionado.

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