Desorientando São Paulo

Há segredos e muito mais história do que se imagina nos nomes das ruas e avenidas

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Por Redação
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A cidade é documento implacável de uma sociedade. Sua cultura está ali impressa, seus valores registrados. "Há edifícios que contam o passado ao presente", constatou o ensaísta Alexandre Herculano. Mas há um documento mais modesto e não menos significativo: a toponímia (estudo da origem dos nomes de lugares). Por esse singelo registro, muito se pode saber da vida urbana. Em Paris, pode-se ver a Rue de la Contrescarpe e saber que por ali passava a muralha da cidade (contra escarpa). O Museu d?Orsay lembra a estação de trem que ali funcionou. Dessa maneira, cada placa de rua passa a ser um registro histórico. Pode-se voltar a Paris tranquilamente, que todos logradouros estarão com seu nome original. Já a história de São Paulo parece destinada ao despreparo ou oportunismo de vereadores acusados pela população de resumir suas atividades à alteração do nome de ruas e atribuição de títulos à sua clientela. Injusta assertiva. Vereadores inventaram um meio de atribuir nomes. Agora muitos cruzamentos de rua são batizados com o pomposo título de "praça". A iniciativa serve apenas para desorientar motoristas. Visitantes não encontrarão a Ponte Cidade Jardim, a Ponte da Vila Maria, a Avenida Tatuapé. O Túnel 9 de Julho esteve a ponto de perder sua denominação consagrada, não fosse a pronta reação da opinião pública. Agora, o túnel conta com uma "subdenominação", solução infeliz. A Avenida Águas Espraiadas perdeu sua identidade. O córrego subsistirá até o momento em que algum administrador míope resolver encaná-lo (não é o mesmo que canalizá-lo). A cidade assiste ao empobrecimento cultural com a perda de seus referenciais. Nem o centro escapou. O tradicional Largo do Ouvidor desapareceu. A Avenida São João conheceu séria deterioração a partir do momento em que ali se ergueu um "elevado". Essa obra inviabilizou a construção da linha São João do Metrô e decretou a decadência da outrora bem urbanizada avenida. Esse estrupício recebeu o nome de um presidente da época da ditadura militar, mas a população se recusa a usar o nome, preferindo o pejorativo "Minhocão". PARTICULARIDADES A toponímia paulistana chegou a intrigar o viajante Karl von Koseritz que aqui esteve em 1883: "Uma particularidade de São Paulo: parece que os paulistas eram, em geral, idealistas, pois deram nomes curiosos a partes de sua cidade. Assim, o lugar mais solitário da zona nova se chama ?Campos Elísios? e uma pequena ilha no Ribeirão Inhangabaí, onde está o quartel-general das lavadeiras, se chama ?Ilha dos Amores?! O cemitério está na ?Consolação?." (O viajante apenas cometeu um equívoco: a Ilha dos Amores ficava no Tamanduateí - cheio de lavadeiras, é claro). Mapa de São Paulo de 1930 mostra uma tentativa de se alterar o nome das ruas do "Triângulo". Nem sequer o Pátio do Colégio escaparia. A reação não se fez esperar e as ruas recuperaram suas históricas denominações. E há vias que milagrosamente conservaram sua denominação original. Como a Ladeira Porto Geral, assim conhecida por ter sido a principal comunicação com o Tamanduateí. Que tal informar a população da origem do nome das ruas? O marechal Arouche de Toledo, primeiro diretor da Academia de Direito (apesar do título, não era militar), introduziu em São Paulo a cultura do chá - de grande qualidade, diga-se. Sua chácara correspondia à atual Vila Buarque, incluindo o largo que hoje leva seu nome. Uma rua no rumo do Anhangabaú se chamou Rua do Chá e, depois, Barão de Itapetininga, em homenagem a outro dono de chácara da região. O chá sobrevive na denominação do viaduto. Quando foi inaugurada a Avenida Paulista, quiseram batizá-la de Joaquim Eugênio de Lima, em homenagem a seu idealizador. Ele recusou a deferência, afirmando: "Será Paulista em homenagem aos paulistas." Eugênio de Lima saiu engrandecido do episódio. A cidade é que importa. REVOLTA Em certa época, tentaram mudar o nome da Rua da Consolação. A reação da população foi fulminante: placas foram arrancadas e surgiram faixas com a inscrição: "Esta rua sempre foi e sempre será Rua da Consolação." E pronto. Graças a essa tomada de posição, foi salva a tradicional denominação. Semelhante fato ocorreu com a Avenida dos Eucaliptos. Seu nome foi alterado, mas ninguém tomou conhecimento e ela continua sendo dos Eucaliptos. As igrejas constituíam referências fundamentais na toponímia: Largo de São Francisco, Rua de São Bento, Ladeira do Carmo, Rua do Rosário dos Homens Pretos (a igreja ficava no local da atual Praça Antônio Prado). Essa rua, à época do Império, recebeu o nome de Rua da Imperatriz. Após a proclamação da República, retiraram essa homenagem (sem comentários) e substituíram pela atual 15 de Novembro. Fernando Pessoa, em sua juventude, redigiu em inglês o guia Lisboa: What the Tourist Should See (Lisboa: O Que o Turista Deve Ver). Encontrado entre seus escritos, mereceu edição bilíngue em 1992. Quem hoje se dispuser a conhecer Lisboa, com valiosas indicações de sua história, poderá utilizar esse guia. Encontrará a Rua das Amoreiras, o Largo da Estrela, o Chiado, a Calçada da Tapada, a Travessa da Saúde, a Rua de Santos-o-Velho. Que tal jantar na Rua dos Bacalhoeiros? Fica na Baixa, perto da Travessa dos Bicos. O guia nunca perdeu sua atualidade. Na cultura luso-brasileira, há outros segredos contidos na nomenclatura de vias e caminhos. Estudos recentes mostram a importância da Rua Direita na estruturação das cidades. Era a rua que abrigava a Matriz, a Casa do Governador, a Misericórdia. Era o eixo central a partir do qual a cidade ia se expandindo, com o surgimento de ruas como a do Porto, da Fonte, de São Francisco, do Mercado. Poderemos encontrar esse fenômeno na África, no Oriente, em ilhas, como São Tomé, na costa ocidental da África. O Brasil não é exceção. No início do século 19, ao ingressar na cidade vindo da zona leste pela "Estrada do Rio de Janeiro", como notou Tomas Ender, o viajante deparava com a extensa Várzea do Tamanduateí, conhecida como Várzea do Carmo, hoje transformada no Parque D. Pedro II. Desse ponto, podia-se desfrutar de uma invulgar vista da cidade, registrada por artistas viajantes, como o próprio Ender (1817) e Arnaud Julien Pallière (1821). A sombra de uma frondosa figueira, visível de longas distâncias, acolhia o visitante. A árvore aparece em obras de vários artistas do início do século 19. Dessa forma, e espontaneamente, nasceu a denominação pela qual é conhecida até o presente: Rua da Figueira. COMPROMISSO Há, portanto, sob a denominação de logradouros muito mais história do que se imagina e sua preservação e reabilitação constituem dever de cidadania, um compromisso com a cultura da cidade e sua memória. Isso nos faz lembrar que a praça mais bem projetada no centro da cidade é, por todos os títulos, o Largo da Memória, cuja denominação condiz com a inscrição existente na base de seu obelisco: "Ao zelo do bem público." A toponímia, enfim, constitui precioso instrumento para se visualizar a história no espaço urbano e será necessário trabalho sistemático para dotar a cidade com esse registro histórico. Duas providências se impõem: um novo projeto para placas - com a premissa de sua perfeita visibilidade e implantação - e, para alegria dos motoristas, a remoção de placas de praças colocadas em alguns cruzamentos. Mas boas ideias serão sempre bem-vindas, a exemplo dos "totens" da Avenida Paulista.

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