Diários de uma viagem de ônibus pela América Latina

A aventura dos motoristas que não tiveram o privilégio de serem buscados pela FAB na Venezuela

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Por Agencia Estado
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Quando o ônibus da Arca Turismo chegou à garagem da pequena transportadora em São Bernardo do Campo, na última sexta-feira, após 23 dias na estrada, seus 42 passageiros já desfrutavam do conforto de casa há mais de uma semana. Enquanto os estudantes que contrataram a empresa de fretamento para levá-los à Caracas para o Fórum Social Mundial retornaram ao Brasil em poucas horas de vôo, a bordo de um avião da FAB enviado pelo governo brasileiro para resgatá-los, os três motoristas do veículo não tiveram outra opção para retornar: rodar os mais de cinco mil quilômetros que separam a capital venezuelana da cidade do ABC paulista. A aventura do grupo ficou conhecida por causa da trapalhada do responsável pelo planejamento da viagem, o estudante de filosofia José Werley Torres, que exigiu da empresa que o ônibus cruzasse Bolívia, Peru, Equador e Colômbia antes de chegar à Venezuela. Ele acreditava que fazendo esse trajeto o grupo chegaria a Caracas cinco dias depois da saída de São Bernardo, no dia 19 de janeiro. Segundo os cálculos do estudante, eles estariam na capital venezuelana para a cerimônia de abertura do Fórum, marcada para o dia 24. Chegaram a tempo de ver apenas o encerramento do evento, dez dias depois do embarque. Por causa do desgaste dos passageiros com a estafante viagem de ida e o fim do dinheiro da maioria deles para ser usado na volta, uma operação foi montada pela embaixada brasileira para repatriar o grupo. Os motoristas, no entanto, ficaram de fora. Apesar de se tratar de uma aeronave de carga, o Hércules C-130 enviado pela Força Aérea Brasileira não estava preparado para acomodar o Scania branco da empresa de turismo. Depois de alguns dias à espera da resposta do governo brasileiro ao pedido de repatriação, Miguel Serrano, de 69 anos, Alexssandro Oliveira, 31, e Anderson Delabarba, 34, iniciaram a viagem de volta, conduzindo um ônibus vazio e perseguidos por um prejuízo de R$ 12 mil. Após o desgastante percurso de ida, os três motoristas não tiveram dúvidas em optar pelo caminho que desde o início recomendaram a Torres. Saíram de Caracas em direção a Manaus, um percurso de cerca de 2 mil quilômetros que tomou dois dias inteiros de viagem. A demora, lembram os motoristas, deveu-se principalmente ao trecho entre Boa Vista e a capital do estado do Amazonas, região de reservas indígenas onde não faltam estradas esburacadas e regras de conduta impostas aos viajantes pelos nativos. Há um trecho de 150 quilômetros entre as duas capitais, por exemplo, onde não se podia parar nem tirar fotos. De Manaus, embarcaram em uma balsa em direção a Belém, de onde seguiriam, via Brasília, para São Paulo. O fato de terem sido "abandonados" pelo governo brasileiro parece não ter gerado ressentimento nos três, que ainda tiveram que agüentar mais cinco dias e seis noites enclausurados na embarcação, e mais dois dias de estrada até São Bernardo. Diários de Motocicleta e Central do Brasil Motorista há mais de 30 anos e dono da Arca Turismo, Seu Miguel não se conforma com a teimosia de Torres, que queria porque queria fazer o percurso pelos países sul-americanos. "Não sei se ele queria chegar ao Fórum ou fazer turismo pela América Latina", disse Doroty Serrano, filha de Seu Miguel que trabalha na administração da empresa de transportes. Segundo o motorista de 69 anos, durante toda a negociação da viagem, ele tentou convencer o estudante de que era mais seguro ir pelo Brasil. Nesse caso, a única dificuldade que enfrentariam seria chegar a Manaus, cidade acessível apenas por vias fluviais. Para resolver o problema, teriam que embarcar em uma balsa em Belém e viajar por cerca de cinco dias por rios da Floresta Amazônica. Mas não adiantou. Torres, que jurava ter checado todas as distâncias, insistiu no percurso, que parecia inspirado na viagem de Che Guevara retratada pelo filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Para ele, não compensaria perder os cinco dias no roteiro à lá Central do Brasil proposto por Seu Miguel. "Ele dizia que tinha conhecimento do trajeto, mas não tinha conhecimento nenhum", disse Seu Miguel, que fez Torres assinar um documento se responsabilizando pela decisão de seguir pelos países vizinhos. "No Brasil, nenhuma empresa de turismo tinha feito essa viagem. Não tinha de onde tirar a quilometragem certa", acrescentou. E foram os contratempos não previstos no "planejamento" de Torres que levaram à demora interminável. Na Bolívia, por exemplo, sacolejaram por 450 quilômetros em uma estrada de terra durante 24 horas. Ao chegar novamente em um trecho de asfalto, Alexssandro não agüentou: desceu do ônibus e correu para se ajoelhar sobre o calçamento. Já na Colômbia, foram impedidos pelo exército de viajar durante a noite devido aos riscos de seqüestros realizados pelas guerrilhas que dominam as selvas do país. Isso sem falar no frio que passaram ao cruzar os Andes. Até folha de coca tiveram que mascar para agüentar as altitudes de mais de 4 mil metros. Para piorar, ainda no Peru receberam a notícia da morte de quatro estudantes mineiros após um acidente com um ônibus brasileiro que fazia o mesmo trajeto. "Nós ficamos sabendo do acidente na estrada. Eu e o Alex ficamos muito tristes com a notícia", lembra Anderson. Ele conta que o ônibus mineiro, que fazia o mesmo percurso do grupo paulista, sofreu o acidente na região de Arequipa, na Cordilheira dos Andes. "Naquela região é comum você pegar uma camada fina de gelo no asfalto, o que dificulta muito controlar o veículo", continua Anderson. Os sobreviventes do acidente da excursão mineira foram trazidos de volta ao Brasil pelo mesmo avião da FAB que dias depois também buscaria o grupo que chegou à Venezuela. Cinco dias numa prisão flutuante Embora presumisse que muitas dificuldades poderiam aparecer durante o percurso, Seu Miguel admite, no entanto, que quando já não havia mais volta, ficou curioso para conhecer o percurso. Alexssandro, um dos motoristas que o acompanhou, provoca, gargalhando: "Foi embarcar na aventura dos ´doidos´ e depois queria desistir". Passada a brincadeira, ele acrescenta: "Em algumas situações, se pudéssemos, teríamos abandonado a ´carga´ e desistido". Mas Seu Miguel jura que não se arrepende de ter optado por participar da viagem. A única situação da qual reclamou durante toda a conversa que teve com o Portal Estadão.com.br foi os cinco dias e seis noites claustrofóbicas passadas a bordo da balsa que faz o trajeto Manaus-Belém, já na volta a São Bernardo do Campo. A embarcação, que cobra mais de R$ 1,5 mil por veículo, costuma levar cerca de 70 carretas e se desloca a uma média de 15 Km/h, não faz paradas ao longo da viagem. "Aquilo é uma prisão", desabafa Seu Miguel. Ele conta que além da falta do que fazer, uma outra marca da viagem é a péssima comida servida aos passageiros. Reprodução/AE Espremido entre caminhões, o ônibus encara cinco dias de viagem de balsa Já para Alexssandro e Anderson, o que mais impressionou na viagem pelos rios da bacia do Amazonas - além da largura dos leitos, que chegam a ter 20 quilômetros de uma margem à outra -, foi um ataque pirata sofrido durante uma das noites. Como muitos caminhões que passam por ali vêm da zona franca de Manaus, são comuns as invasões de criminosos que arrombam as carretas atrás de equipamentos eletrônicos. Para não falar nas histórias de assombração que povoam o imaginário dos tripulantes da balsa. Apesar de todas as dificuldades, ao final dos 23 dias de viagem os três motoristas não aparentavam o cansaço de quem dirigiu ao todo quase 15 mil quilômetros. Os dias difíceis, dizem, foram compensados pelas paisagens diferentes com as quais tiveram contato - dos charcos do Pantanal boliviano às altitudes dos Andes no Peru; do deserto do Atacama à floresta equatorial. E quando voltarem à rotina, até a viagem mais extensa parecerá banal perto do que viveram.

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