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Dilma diante de uma aliança delicada

A relação entre capital e trabalho, administrada com habilidade durante a era Lula, pode se deteriorar caso surjam sinais de tempestade

Por Marcus Figueiredo
Atualização:

Os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva serão motivo de inúmeras interpretações. Só este fato já revela a sua importância na história política contemporânea brasileira. O primeiro debate contrapõe Lula a Getúlio Vargas. Para uns, Lula revive Vargas. Para outros, não. Para estes, Lula supera Vargas.Estou entre os que veem na era Lula uma nova macro-ordem política no Brasil. Ao contrário de Vargas que construiu uma ordem política de cima para baixo, conciliando os interesses do capital e do trabalho, ambos urbanos, caracterizada pela aliança PTB-PSD que governou o país de 1945 a 1964.Essa aliança rompeu-se em 63 quando o PTB pareou sua força congressual à do PSD. Deu-se, então, o que ficou conhecido como "a paralisia do Congresso" por conta do confronto em torno da demanda pelas "reformas de base" opondo as duas maiores forças políticas de então.Estava rompida a aliança capital-trabalho construída por Vargas. João Goulart, então presidente, recusou-se a reprimir as lideranças radicais do PTB, capitaneadas por Leonel Brizola, e o movimento sindical - a base popular do PTB que pressionava o Congresso. As tentativas de conciliação de Tancredo Neves, San Tiago Dantas e, finalmente, do Plano Trienal, proposto por Celso Furtado, acabaram sendo atropeladas pela radicalização entre esquerda e direita.A eleição de Lula em 2002 vem de uma história totalmente diversa, num mundo social e político também distinto. O PT foi criado à margem do sistema partidário vigente cujos partidos remontavam às linhagens pré-64 e outros criados pela ditadura, de cima para baixo. Golbery do Couto e Silva tentou reviver Vargas estimulando novos partidos para conformar uma nova aliança capital-trabalho, com bases partidárias. Embora reconhecido como grande estrategista, seu plano não deu certo. Não estavam em seus planos o surgimento do PT nem do PDT de Brizola.A história política recente, depois de 20 anos de democracia, acabou produzindo um sistema partidário cujos partidos têm nítidas posições. Suas práticas congressuais, suas bases sociais preferenciais, seus discursos e seus programas são de fácil classificação no eixo esquerda-direita, ainda que muitos intelectuais considerem como obsoleta essa divisão do sistema partidário na sociedade contemporânea.É verdade que da metade do século passado para cá o radicalismo arrefeceu, mas é também verdade que o conflito fundamental na sociedade capitalista continua sendo o mesmo velho conflito entre capital e trabalho. Hoje os nossos partidos estão alinhados tendo o PT liderando a esquerda e o PSDB e Democratas liderando a direita. As tentativas de conciliação e alianças pelo alto entre capital e trabalho desaparecem do cenário mundial no pós-guerra. Juntos desapareceram também o getulismo e o peronismo, só para ficarmos por aqui.Em 2002, Lula apresenta-se à sociedade encarnando essa nova conjuntura histórica com objetivos e estratégias políticas novas para a alegria de uns e tristeza de outros. O objetivo era promover a aliança capital-trabalho e, para isso, o PT alia-se estrategicamente a um pequeno partido de direita, representante do capital, tendo como seu vice, José Alencar, um grande empresário. Ambos à margem das linhagens tradicionais de há muito incorporadas ao establishment. Em seus dois mandatos, o governo Lula pautou-se pela construção da aliança capital-trabalho, claramente representada em seu gabinete. Assuntos do capital, coordenados pelo capital; assuntos do trabalho coordenados pelo trabalho.Este trajeto relembra o trajeto construído pelos partidos socialistas e social-democratas europeus cujo resultado foi a construção da social-democracia europeia. Se o PT e o Brasil de Lula tornaram-se social-democratas será um debate que durará muito tempo, temo que sem um consenso. O fato é que o macro projeto do governo Lula caracterizou-se por três políticas fundamentais: estabilidade econômica e monetária, desenvolvimento econômico e inclusão social, com iguais prioridades.O apoio da sociedade a esse projeto foi tão amplo que pautou as eleições de 2010. Os candidatos da oposição o absorveram de tal forma que José Serra e Marina Silva o adotaram como projeto de país. Claro, no embate eleitoral, fizeram críticas aqui ou acolá, sempre, porém, com a premissa da aceitação do projeto ao qual pretendiam apenas oferecer melhorias. Pouco produtiva essa estratégia eleitoral, como sabemos e os resultados demonstraram.Dilma Rousseff terá pela frente uma tarefa política igualmente gigantesca. O projeto de país está desenhado e suas bases assentadas. Sua principal tarefa será consolidar esse projeto e transformá-lo em projeto de Estado e não apenas de governo. Ela terá Lula no máximo como conselheiro e aliado para controlar o PT. No dia a dia do governo e no controle de seu maior aliado, o PMDB, os conflitos estarão sempre presentes.O PMDB não foi co-autor do projeto político que está sendo legado por Lula, mas o PT e seus aliados preferenciais, o PSB e o PC do B, sim. Embora a oposição tenha perdido força eleitoral, ela continuará politicamente forte. Dilma terá uma tarefa histórica pela frente. Sustentar uma aliança social delicada: a aliança capital-trabalho, construída de baixo para cima e não de cima para baixo. Essa aliança pode ter vida longa num ambiente de afluência. Mas, apesar de sua história distinta da do passado, a aliança social fundamental para o projeto social-democrata de hoje pode trincar aos primeiros sinais de tempestade. O conflito capital-trabalho explode na escassez. O caminho vivido no passado ainda está fresco na memória: em 54 o Brasil perdeu Getúlio Vargas, em 64, perdeu João Goulart.Lula continuará sendo o avalista desta aliança. A ele caberá a missão de controlar os radicais de direita e de esquerda, tarefa que construiu e da qual sabe que não poderá abdicar.É CIENTISTA POLÍTICO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO

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