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Ele escreve em todas as linhas

Frederico Barbosa- o poeta da Casa da Rosas, do museu, da biblioteca- continua acreditando na força da poesia

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Por Redação
Atualização:

O poeta Frederico Barbosa quase não escreve mais. Mas ele continua acreditando na força da poesia. Ele continua poeta. Seu último livro, A Consciência do Zero, foi lançado em 2004. "Aí veio isso aqui", diz, referindo-se à Casa das Rosas – Espaço Cultural Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, sob sua direção desde que foi reaberta há exatos quatro anos. "De lá para cá, devo ter escrito no máximo uns dois poemas. Agora eu faço muita coisa em função da poesia dos outros, do ‘poetariado’ de São Paulo." Ele continua poeta.     Leia abaixo poemas do autor sobre São Paulo:   Do livro Nada Feito Nada (1993)   ACONTECE   falsa reta instantânea urgente avenida artéria em curva aprende em cantar pular pelo canteiro ou deitar à noite em pista quente como com fome incomum torpedo só a paulista é parte e todo centro louca completa de tons segredos fala ferve grita abala a gente   Do livro Contracorrente (2000)   Paulistana de verão   branca segura a saia surpreendente e mínima como quem não se sabe mostrar no calor desacostumada insegura atravessa a rua revela-se quase sem querer beleza ZL descolada fingida pedra desce da penha retrô querendo-se moderna o vento leva-lhe a quase saia e vê-se a jóia surpresa lapidada que desaparece na boca quente do metrô   Quando Chove   Em São Paulo, quando chove, chovem carros. Tudo pára: pontes, viadutos, Marginais. E a água retoma seu curso original: Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu. Ruas onde eram rios, ex-rios, caminhos de rato, canais. Rios sobre ruas, Elevado, Via Dutra, Radial. Em São Paulo, quando chove, chovem apocalipses de quintal.   Do livro Brasibraseiro (2004)   pernambucano paulistano   cada são paulo a que retorno toca tanto que é ruim na marginal eu quase choro só porque me sinto vir pernambucano paulistano como tantos por aqui tenho-a minha toda e tanto que não a posso possuir   mais prazer encontro eu lá morar em são paulo é viver em fuga cidade escapista essa sem praia megavila provincianópole oxímoro máximo capital do interior a alegria começa como promessa de norte utópico quando a estrada atravessa o trópico   as cidades e seus donos   há cidades desconfiadas impessoais misteriosas recife são paulo em que se mora por empréstimo de aluguel de passagem sem se sentir dono como inquilino temporário mas que ninguém tem   há cidades que por mistério se entregam por inteiro salvador rio de janeiro em que cada morador é proprietário verdadeiro em que todo o povo sente-se e afirma-se dono em todo gesto no menor jeito   do livro Rarefato (1990)   Nudez 1984   corpo capaz de revolta luta fogo fúria faísca viva: a cidade arquiteta seus planos   EP em SP uma traição 1982   a aparição dessas multifaces no metrô não como pétalas de chuva mas como ar bustos molhados de suor     O ano passado na São Silvestre 1986 os passos largos já um tanto lentos na avenida paulista traduziam em movimento a agonia final da reta finda círculo sutil fechando um ciclo vento varrendo fermento.     Esquinas das ruas molhadas 1984   Do farol, o vermelho se irradia sol. Os olhos fechando na água iluminada feixes poças poemas. Quase nada.       Av. Brasil, SP 1987   flor de farol colhida às pressas entre o tédio maquinal da marcha lenta sinal de diferença em meio à indiferença metálica desses corpos impessoais na agonia da imobilidade densa semáforo signo insano ensaio de abalo sísmico lente de aumento no amor e na impaciência   Paralelo enzimático 46o40' nove movimentos pelas ruas de São Paulo 1983   I   Destes todos poetas de dúvidas e baratos exala um jeito de resto: a gastronomia do gasto. Os que empacam e param no ato, cortando, retocando o indispensável, cavam a troca do already made (o já era) pelo não desfeito.   II   noite clara visão subterrânea penetrantemente longo suor os lábios lambem os beijos balas e pavor subvertente corrente paralela corrida veloz (ruas) cidade rebelde acabar sim como camus e james dean   III   Terroristas em tiroteio: ferida a faca e bala, a fala. Poesia em oposição: não mais frase de efeito sobre o fato, mas fincar, ferir defeito no flagrante da relação. Placa de platina, faca de alumínio, busca de Plutão: deslocar, agravar, falsear.   IV   quase manhã de dia a dentro reinventando nada entre memória e lenda respirando rente ao chão pó por entre todos os poros o mau humor deste mundo todo sujo e lento fumando bogart e godard entrelaçado invento paciência de espera lenta cético opor nada entre um e outro tempo   V   Inferir a ordem, inserir, ferir, fincar.   VI   mundo inundado de filme negro fumaça morcego no ar antena de rápido radar anda por ecos ondas e nós   VII   Incerto errar por aí percorrendo em paradas eqüidistantes, contínuo equilibrar de inconstâncias. Nada de mágica, muita matemática (furada) forças em fúria e a calma serena do acerto de contas.   VIII   bocas abertas buracos escuros becos elos pesados impõem lógica aos sons ordem e revolta atando nó na espera dia áspera visão   IX   nada de graça grandes cobranças muita memória (depositada) fogos de artifício grades, jogos, lembranças, jaulas multiplicadas feras sons rotas tiros e metas rajadas faixas quânticas o universo em gotas e comprimido compreensão não correr sempre percorrer nada       De Certa Biblioteca Pessoal 1991   III   Volta-me a leitura das placas de rua: "Hospital Infantil" "Rua Borges Lagoa". A alegria de ler tudo o que passava: luminoso, cartaz, revista, placa de carro, soco de Batman. Independente da voz alta do outro que traduzia a voz do herói nos balões os avisos da cidade nova e embaraçada.   Seguir tantas tramas impressas na rua, nas bancas, nas páginas. Em cada nova leitura uma antiga descoberta reverbera.       IV   O menino transplantado da praia para um prédio prisão de Niemeyer chora em pânico no cinema com suas legendas ligeiras e sua língua estranha. Ganha sua primeira TV: Lingerie, luta livre, filmes de terror, desenhos dublados substituem a liberdade que ainda não guarda na memória: O mar, o desenho da praia antiga, a casa-navio, o sorvete do Holliday e o cinema na calçada.   V   Em Boa Viagem, no Corta-Jaca, a leitura era outra. Dentro do círculo na areia que meu pai desenhava, eu ficava alegre, obediente. Naquela prisão mental cercado de sol e vento, o brilho da areia fina era a leitura branca que hipnotizava. Uma maria-farinha perdida era o perigo mais temido: o arrecife dobrava as ondas e a avenida deserta dormia. Meu pai desenhava um círculo na areia e ia nadar... Em Boa Viagem, no Corta-Jaca, eu não sabia, a leitura era vasta.   VI   Em São Paulo, nem me lembro do frio, aprendi a ler. Aprendi a ficar acordado noites cobertas lanterna sob o lençol, escondido lendo Dumas, O Pequeno Lorde, de quem será? As aventuras de von Humboldt, Júlio Verne, Lobato, tudo que me escapava da tristeza, da falta do mar, das doenças frias e repetidas. A gota daquele avô, as tolices de Pedrinho, o isolamento de Dantés no meu castelo de If, a voz das tulipas de Dumas, tudo era tão familiar.   VII   Certa doença me isolou na biblioteca do meu pai. Lá não havia círculo, nem areia, nem sol, nem arrecife protetor, nem estrela do mar. Havia um livro verde, um livro entre tantos outros livros ainda distantes, não lidos. Havia um livro verde e grosso, um livro que pedia para ser lido. A lombada convidava: sobre o verde, um arco, branco e promissor. Livro de aventuras de arqueiros vingadores, de damas indefesas, de heróis sobre-humanos. E aquele arco tão bem desenhado, quase harpa, tentando, provocando, tirando o sono no sofá. Ao pegá-lo, o prazer solitário, a esperança. O nome do autor certo cowboy. Três Ys estranhos. Ao abri-lo, a decepção. As letras não batiam. Não formavam palavra. As palavras que nunca vira. A língua era outra e eu não sabia. Não sabia nem que havia livros que não podia. Não sabia. Certa doença me isolou na biblioteca do meu pai.   X   E agora era tudo poesia. Poesia em cortes no jornal, nos livros de química, nas aulas maçantes, nos manuais de astronomia. Poesia em cores na caixa preta de tantas viagens, nas ruas de São Paulo, na areia branca de Boa Viagem. Até que o círculo se fechou nessa areia transplantada, nesse eco seco de nadas.

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