Estátua para (quase) todos os gostos

Rio assiste nas ruas à proliferação de esculturas celebrando famosos, moda alfinetada por críticos de arte

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Por Alexandre Rodrigues
Atualização:

Ex-capital do Império e da República, o Rio coleciona quase 700 monumentos históricos e abriga uma das mais famosas estátuas do mundo: a do Cristo Redentor. Mas, nos últimos anos, a cidade optou por uma profusão de representações bem mais prosaicas de ilustres mortais. A proliferação de estátuas de personalidades da música, da literatura e da cultura carioca em obras realistas e interativas tem a simpatia do público, mas incomoda críticos de arte preocupados com a falta de critério. A pedido deles, a prefeitura quer reabilitar uma comissão de notáveis para avaliar as dezenas de novas propostas. A mania tomou conta do Rio em 1996, quando o compositor Noel Rosa foi imortalizado numa escultura em tamanho natural em Vila Isabel, na zona norte. Sentado numa mesa de bar, com direito a cadeira para uma companhia de verdade, o simpático Noel de bronze teve o êxito repetido em 2001 no calçadão de Copacabana, com a reprodução de Carlos Drummond de Andrade em seu cenário predileto. Virou parada obrigatória. O sucesso acabou estimulando uma série de outros tributos. Basta o falecimento de uma personalidade querida para se pensar em fazer uma estátua dela. Até a morte de Michael Jackson levou o governador Sérgio Cabral (PMDB) a prometer uma estátua do astro numa laje do Morro Santa Marta, que os olhos do cantor viram apenas uma vez, na gravação de um clipe em 1996. Mais de 20 estátuas esperam autorização da prefeitura, como as de Tom, Vinícius, d. Helder Câmara e Chacrinha. A poucos passos de Drummond, uma representação de Dorival Caymmi é o mais novo alvo dos admiradores da orla. Na porta do Copacabana Palace, topa-se com o colunista Ibrahim Sued. Bem perto dali, outro ícone do jornalismo social, Zózimo Barrozo do Amaral, contempla o mar do Leblon. No Leme, é possível se sentar à mesa com Ary Barroso. A onda de estátuas figurativas já espalhou pelo menos 20 exemplares na cidade, a maioria na zona sul e no centro. Na lista de homenageados em traços informais, predominam expoentes culturais, como Pixinguinha, Otto Lara Rezende, Braguinha, Luiz Gonzaga, Cartola e Manuel Bandeira. Mas também houve espaço para a retomada de homenagens oitocentistas, mas sem o esmero das obras do passado. É o caso de um busto insosso da imperatriz Teresa Cristina, num canteiro secundário do centro, e uma estátua da princesa Isabel, em Copacabana. Pouco parecida com a Redentora, a obra ganhou o apelido de "Dona Benta". Na Glória, um busto gigante de Getúlio Vargas é conhecido como "cabeção". "O Rio tem exemplos de grandes bustos e esculturas de qualidade excepcional do passado, mas o que estão fazendo hoje são obras caricatas, que não trazem qualidade artística. É uma coisa muito fora de época", reclama o escultor Ivens Machado, que alerta para o risco de "carnavalização" da cidade. Ele foi um dos que participaram de um debate sobre a multiplicação de estátuas, que reuniu artistas e críticos de arte e representantes dos governos estadual e municipal no final de julho. Participantes, como o crítico de arte Paulo Herkenhoff, defenderam até a retirada de alguns exemplares. Para o artista plástico Carlos Zilio, a prefeitura erra ao ceder ao apelo fácil das esculturas interativas e estátuas doadas. "Poderia haver um trabalho como a estátua do Drummond, como curiosidade. Mas colocar o Caymmi logo ali do lado já é um parque temático, né? É preciso parar com a mania de que todo mundo merece estátua", diz. "O espaço público é um museu a céu aberto. Ao abrir mão do potencial artístico, a relação das pessoas com os monumentos se torna anedótica, sem reflexão." O estopim do movimento foi a oferta de uma escultura de Romero Britto representando a Garota de Ipanema para a zona sul. O artista radicado em Miami faz sucesso com suas pinturas coloridas, mas, para os críticos, pode agravar a desarmonia estética da febre de esculturas. "É uma coisa horrível", teme Machado. A secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, ressaltou no debate que é preciso considerar que as pessoas gostam das obras populares. A prefeitura estuda reativar uma comissão de historiadores, artistas e urbanistas para avaliar a viabilidade de novas obras e retomar aquisições de arte contemporânea. Segundo Bia Duarte, que cuida do licenciamento das obras de Britto no Brasil, o artista ofereceu a escultura numa conversa informal com Cabral e não ficará chateado se a comissão rejeitá-lo. "Acho muito saudável que uma cidade como o Rio tenha um grupo para definir critérios, mas discutir a arte como arte é complicado. Sempre vai ter quem gosta e quem não gosta. O crítico de arte tem um preparo diferenciado e esquece que há milhões que gostam do que ele não gosta. Mas acho a polêmica sempre saudável." "Infelizmente, esse tipo de homenagem virou hábito, gerando uma instalação de estátuas sem critérios. Algumas obras são bem-sucedidas, outras usam material inadequado, são de difícil manutenção, mal localizadas. Faltou inteligência urbana", diz o subsecretário de Patrimônio Artístico do município, Washington Fajardo, que aguarda decreto do prefeito Eduardo Paes (PMDB) para organizar a comissão. "Queremos sistematizar a aprovação, sem criar uma eugenia urbana. Existe também uma dimensão popular do espaço público." Enquanto a prefeitura pensa na comissão, no último mês três "bonecos" foram inaugurados. Na entrada do Porto do Rio, retratou um casal de missionários da Igreja Presbiteriana, cuja catedral, no centro, já tem na porta um conjunto de estátuas interativas representando fiéis. E a prefeitura inaugurou há 20 dias uma estátua de Calvino, fundador da denominação, do outro lado da rua.

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