Favelas concentram mortes no Rio

Hipótese antiga foi só agora comprovada por pesquisa do Ipea; presença de gangues armadas explica letalidade

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Por Felipe Werneck
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A faxineira Gracilene Rodrigues e o cantor Roberto Carlos são exemplos de moradores de dois extremos do Rio. Ela vive na Favela Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré, em Bonsucesso, zona norte. Ele escolheu a Urca, na zona sul. Gracilene perdeu o filho de 8 anos assassinado com um tiro de fuzil no portão de casa, em dezembro, durante operação policial. O bairro de Gracilene apresentou a maior taxa de homicídios da cidade em estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Foram 150 mortes em cinco anos (2002-2006), ou 163 casos por 100 mil habitantes. No período, dois moradores da Urca foram mortos (taxa de 6 por 100 mil). O local de residência das vítimas foi o ponto de partida da economista Rute Imanishi Rodrigues, que analisou 11.255 registros de homicídio. Tudo começou com uma premissa: "É verdade que as vítimas da violência concentram-se nas favelas?" O resultado é um mapa com dados georreferenciados que aponta coincidência entre áreas de favelas e locais de maior concentração de vítimas. Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, o trabalho representa um "marco crucial" nos estudos sobre violência urbana no Rio. "Aqui, nunca ninguém fez isso. É uma hipótese antiga, mas que ainda não tinha sido comprovada", diz, referindo-se à constatação do Ipea. "É incrível que o Rio, palco central do tema da violência no País, não tenha tido isso antes, por causa da precariedade dos dados oficiais. O que produz essa altíssima letalidade é a presença de grupos armados ilegais nesses locais." Rute identificou uma "grande mancha" de concentração de vítimas numa região formada por partes de 18 bairros e 53 favelas na zona norte, entre elas Juramento, Pedreira e União. Ali, vivem cerca de 250 mil pessoas e foi possível localizar 927 homicídios como pontos no mapa. O estudo mostra que as áreas mais violentas ficam em favelas maiores e mais antigas, principalmente no entorno delas. Para a economista, em vez de indicar a necessidade de mais repressão policial, o resultado aponta a importância de programas de planejamento urbano, habitação e desenvolvimento. "É preciso pensar no subúrbio. O objetivo é que se tente uma saída diferente." Na época da pesquisa, o Rio tinha 750 favelas cadastradas - hoje, são mais de mil. As áreas de maior concentração de vítimas praticamente se repetem nos cinco anos estudados. E a tabulação dos dados confirma o perfil principal das vítimas de homicídio: jovens (45% tinham entre 15 e 24 anos), do sexo masculino (94%), pretos ou pardos (64%) e de baixa escolaridade (64% não tinham completado o ensino fundamental). Outra mancha ininterrupta se estende do Morro do Alemão aos bairros de Olaria, Penha e Ramos, na zona norte. Há 22 favelas no entorno, entre elas Vila Cruzeiro e Nova Brasília. Na área, com 127 mil habitantes, foram identificados no mapa 274 homicídios. No entanto, a pesquisadora alerta que grande parte dos assassinatos ocorridos na região não pode ser localizada, por falta de informações como endereço, principalmente em Bonsucesso (onde foi possível apontar apenas 40 dos 150 registros no mapa). Numa região que corresponde a grande parte do complexo da Maré, a pesquisadora conseguiu localizar onde moravam 161 vítimas. A área tem 61 mil habitantes e reúne nove favelas. A exemplo do Alemão, não foi possível apontar no mapa 104 homicídios. Bonsucesso foi desmembrado em 1993 e uma parte de seus setores censitários formou dois novos, os complexos do Alemão e da Maré. "É muito provável que grande parte dos registros não geocodificados de Bonsucesso corresponda a endereços dos dois complexos, sobretudo do Alemão", diz Rute. Segundo ela, Alemão e Maré apresentam números relativamente baixos no mapa porque muitos moradores provavelmente declararam Bonsucesso como local de residência. O motivo seria a falta de endereço da maioria dos moradores de favelas. Já na região que agrega os bairros do Catumbi, Estácio e partes do Centro, Santa Teresa e Rio Comprido, onde vivem 150 mil pessoas, foi grande o número de mortes identificadas no mapa: 456. Existem 24 favelas na área, como Mineira, São Carlos e Coroa. Há outra grande mancha no limite dos bairros de Bangu, Magalhães Bastos, Padre Miguel e Realengo. Ali, há 11 favelas e 345 vítimas foram identificadas no mapa. A antropóloga Ana Paula de Miranda, que dirigiu o Instituto de Segurança Pública (ISP) - órgão responsável pelas estatísticas oficiais do Rio - de 2004 a fevereiro de 2008, também destaca o ineditismo do estudo. Segundo ela, análises desse tipo poderiam ajudar a reduzir o desequilíbrio na distribuição do policiamento, que privilegia áreas mais ricas, como a zona sul, com índices de homicídio muito mais baixos. "O Estado opera na lógica da guerra, do confronto. Não existe um enfrentamento ao crime, é um enfrentamento ao território. Isso legitima um processo de criminalização da pobreza. A violência letal não atinge a todos da mesma maneira", avalia o deputado Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu em 2008 a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa. Segundo ele, se fosse feito hoje, o mapa mostraria uma grande mancha também na zona oeste, em áreas dominadas por grupos paramilitares. Sem um sistema como o Infocrim, de São Paulo, a Secretaria de Segurança do Rio não faz análises com o grau de detalhamento do estudo do Ipea. Além de trazer dados apenas sobre o local das mortes, a estatística oficial de criminalidade é agregada por Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisps), que reúnem muitos bairros. Segundo a secretaria, o prazo para integrar os 18 batalhões da capital ao novo Observatório de Análise Criminal é "o fim do ano". "Foram duas décadas de políticas que fortaleceram grupos armados ilegais na cidade", diz a cientista social Silvia Ramos.

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