Jacarés e ‘corridos’: a vida de Gordo, o traficante que sonha ser Pablo Escobar

Acusado de ser um dos líderes do cartel da droga do PCC, Anderson Lacerda Pereira escreve poesias para a mãe e anota em cadernos seus planos e pensamentos: ‘Mata, que Deus perdoa'

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Por Marcelo Godoy
7 min de leitura

O caderno apreendido na casa do narcotraficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, de 41 anos, estava em cima da mesa do cartório da delegacia. Deixaram-no aberto em uma página onde se lia: “Nascidos no berço da criminalidade, compreendemos que o dinheiro atrai muito problemas e violentos nos tornamos. Entre a morte e a amargura existem respeito e honra à sagrada tradição”.

Duas linhas abaixo do primeiro parágrafo, o texto continuava: “Foram muitas as guerras pelo respeito à regra. Afortunadamente, tudo na vida tem solução; a morte é o instituto razoável para traidores e conspiradores”. O texto vinha logo após uma página ocupada por uma poesia sobre o ofício dos magistrados. E concluía: “Erros são irrevogáveis”.

Traficante Anderson Lacerda Pereira, mais conhecido como Gordo Foto: Polícia Civil

Foi essa lógica que cruzou o caminho do protético Emerson Fernando da Silva. Ele foi visto pela última vez quando estava no 49.º Distrito Policial, em São Mateus, na zona leste de São Paulo. Era 30 de dezembro de 2016. Funcionário de uma clínica odontológica, Silva foi ao lugar para receber o que os patrões “lhe deviam”. Acabou algemado e torturado por dois homens – um deles, filho adotivo de Pereira. Em um momento de distração dos torturadores, o protético foi deixado sozinho na sala. Pôde então apanhar seu celular e pedir socorro a uma amiga. Em pouco tempo, a Polícia Militar chegou à clínica e levou todo mundo para a delegacia.

A clínica, segundo a polícia, era uma das 38 que Pereira usou para lavar dinheiro obtido com o tráfico internacional de drogas. Estava então em liberdade, depois de ter sido preso na Operação Alquimia, da Polícia Federal (PF), em 2010, acusado de vender lidocaína e cafeína para traficantes misturarem na droga.

“Enquanto a ocorrência era registrada, o Emerson foi atraído para fora da delegacia e sequestrado. Nunca mais foi visto. Seu corpo nunca foi encontrado”, afirmou o delegado Fernando Santiago, do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc). Santiago desconfia que o destino de Emerson pode ser explicado pelo que descobriu investigando o traficante.

O traficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, leva uma vida luxuosa em uma mansão na Bolívia Foto: Reprodução

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Gordo ficou conhecido por ter criado um esquema que misturava o tráfico de drogas com a lavagem de dinheiro, por meio de organizações sociais contratadas por prefeituras. Chegou a dominar os contratos da área de Saúde de Arujá, uma cidade com 90 mil habitantes na Grande São Paulo. 

Acusado de ser um dos líderes do Narcosul, o cartel da droga do PCC e de seus associados, Gordo está foragido. A polícia tem certeza de que ele está vivendo na região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, com outras lideranças do cartel. Recentemente, a polícia encontrou pistas de uma passagem sua pelo Recife. Em junho de 2020, ele deixou às pressas seus apartamento antes da chegada dos policiais que cumpriam os mandados de busca e prisão da Operação Soldi Sporchi (dinheiro sujo).

CADERNOS

Um desse policiais era o delegado Santiago, que coordenou a operação. “Ele escapou com o filho Gabriel Donadon, de 25 anos.” Donadon é acusado de criar uma farsa para tentar desmontar a investigação que encurralou sua família – tudo ficou registrado em anotações feitas por seu pai, que mantinha cadernos onde escrevia seus planos e analisava cenários e hipóteses sobre como enfrentar seus desafetos e as ações das polícias.

Santiago logo compreendeu que tinha diante de si um material inédito para compreender como funcionava a cabeça do megatraficante. O delegado leu e analisou documentos durante meses para decifrar códigos e traçar o perfil de Gordo. “A meta dele é ser como os grandes traficantes colombianos e mexicanos. Esse é o modelo que ele segue”, afirmou.

Pereira não é o primeiro bandido da história a usar grandes criminosos da realidade ou da ficção como espelho. Em 2009, a Polícia Civil paulista surpreendeu na região de Sorocaba um integrante da máfia de caça-níqueis que usava as falas do personagem Michael Corleone, de O Poderoso Chefão, como exemplo sobre como agir no mundo do crime.

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Com Gordo, os policiais apreenderam livros que demonstram o interesse em aperfeiçoar seus procedimentos. Ali estavam O Príncipe, de Nicolau Maquiavel; Hitler, de Joachim Fest; Cosa Nostra, o juiz e os homens de honra, de Giovanni Falcone; e Minha Vida com Pablo Escobar, de Jhon Jairo Velasquez, o Popeye. “Ele transformava as histórias da máfia em uma espécie de literatura de autoajuda”, disse o delegado. Gordo também se dedicava à gestão dos negócios e estudava matemática financeira.

Gordotem um zoológico em uma de suas propriedades, onde cria jacarés e outrosanimais selvagens 

MÚSICA

Também se interessou pela história de Amado Carrillo Fuentes, o Senhor dos Céus, nascido em Guamuchilito, em Sinaloa, no México. O ‘narco’ mexicano foi o responsável por montar uma grande frota de aviões para trazer a cocaína colombiana do cartel de Medellín até o México nos anos 1980. Dominava então o tráfico de drogas em uma das principais rotas de entrada nos EUA: Ciudad Juarez. Foi com o nome da cidade natal de Fuentes que Gordo batizou uma de suas propriedades – um sítio – e planejou até uma logomarca para o local.

O delegado guarda em seu computador um arquivo com uma música que Gordo dizia ter mandado gravar. Inspirado nos “narcocorridos”, ele encomendou no México a gravação, segundo a polícia, da música em sua homenagem. Un ser humilde conta o que seria a história de Gordo. O corrido é um ritmo mexicano, usado pelos traficantes daquele País como o funk no Rio. Muitos dos traficantes – como mostrado na série Breaking Bad – são “homenageados” com corridos.

Na fuga apressada, Pereira deixou para trás quatro telefones celulares com dezenas de arquivos recuperados pela perícia técnica. Há uma série de fotos de aviões sendo inspecionados na Bolívia. Uma pasta trazia os arquivos com fotografias de passeios feitos por Gordo e sua família na Bolívia. Eles visitam shopping, chegam a um aeroporto, compram joias, fazem testes sobre a pureza da cocaína, registram encontros de negócios em um restaurante, festas, fachadas de empresas – incluindo uma clínica que seria de sua propriedade – e até mesmo uma ema.

Gordo tinha tempo ainda para se dedicar à poesia. Escreveu oitavas e sonetos. Fala de sua vida, amores, de sua mãe e do crime. Em um dos sonetos, o primeiro terceto abre assim: “Eu que sou declaradamente antiestado /podem hipocritamente chamar de máfia ou crime organizado”. Em outro texto, diz “viver entre o amor e o ódio em um ambiente estranho”. Também registrou uma estranha oração: “Oh, Deus ajude-nos a manter vivo o nosso ódio”, concluída com a frase: “Mata, que Deus perdoa”.

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De Pablo Escobar, o traficante copiou o zoológico em uma de suas propriedades. Mandou fazer jaulas e viveiros. Completava o lugar um lago, onde passou a criar jacarés. Foi ali que a polícia suspeita que o traficante tenha se desfeito do corpo do protético. Tudo de acordo com os princípios que ele uma vez listou no fim de um de seus cadernos: “Posso perdoar; esquecer é outra coisa”. 

 

Mensagens mostram rota das Ilhas Canárias e estrutura na Europa

Mensagens de WhatsApp recuperadas nos celulares de Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, mostram a rota de tráfico mantida pelo Narcosul entre as Ilhas Canárias e a África, além de exibir dados sobre a presença do Primeiro Comando da Capital (PCC) em 12 países, expondo os chefes da facção em cada um deles, além dos responsáveis pelas comunicações do grupo: os chamados salveiros, que devem receber e repassar os “salves” emitidos pela Sintonia Final, a cúpula do grupo.

Dos países citados no zap da facção, seis são europeus. Eles mostram a estrutura e filiados em Portugal, na Espanha, na Holanda, na Suíça, na França e na Itália. Investigações do Departamento de Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil paulista, mostram que o PCC nomeou um bandido conhecido como Betinho para gerir os negócios nos Estados Unidos. O PCC começou a montar em 2014 sua estrutura americana na Flórida por causa da impossibilidade de atuar na fronteira do México, dominada pelos cartéis mexicanos, com os quais a organização começou a manter contato.

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