Juristas criticam atuação de advogado em julgamento de estupro, mas anulação de sentença é difícil

Especialistas veem como ofensivo o comportamento de Cláudio Gastão Filho contra influenciadora Mariana Ferrer. Atuação na audiência, porém, deverá ser tratada no âmbito administrativo, com pouca chance de por si só mudar o desfecho do processo

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Foto do author Marco Antônio Carvalho
Por Marco Antônio Carvalho
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O comportamento do advogado Cláudio Gastão Filho contra a influenciadora digital Mariana Ferrer está sendo criticado por especialistas por ter sido ofensivo à vítima, além de ter se afastado da discussão central do processo ao expor imagens antigas da jovem. Ele representa o empresário André Camargo Aranha, que acabou inocentado pela Justiça da acusação de estupro de vulnerável. É pouco provável, no entanto, que a atuação do advogado por si só leve a alguma mudança no desfecho do processo, como uma eventual anulação da sentença. 

Advogado do réu insultou a jovem em audiência. Juiz não interveio Foto: REPRODUCAO/INTERCEPT.BRASIL

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Durante a audiência, Gastão Filho expôs fotos de Mariana oriundas de um ensaio em que disse que ela estava em “posições ginecológicas” e questionava o porquê de ela ter apagado as imagens de suas redes sociais. “Por que você apaga essas fotos, Mariana, e só aparece com a carinha chorando? Só falta uma auréola na cabeça”, diz. Em outro momento, ele diz que o “ganha-pão” da jovem é a “desgraça dos outros”.

“O que o advogado fez é uma coisa que reputo como excessivamente agressiva. Fica evidente o preconceito contra a mulher, como se a mulher sempre fosse a culpada para o que acontece com ela. As fotos não têm nada a ver e não deveriam ser mostradas porque não são pertinentes ao caso”, avalia a advogada criminal Luiza Nagib Eluf, ex-secretária nacional de direitos da cidadania do Ministério da Justiça e procuradora de Justiça aposentada.

Luiza entende que a OAB de Santa Catarina pode tomar providências contra o comportamento do advogado. A seccional já notificou o defensor para apurar possíveis desvios éticos no caso em questão. “Essa é a forma como a sociedade continua a ver a mulher, não reconhecendo seus direitos. É uma coisa animalesca”, comenta a advogada.

Apesar da gravidade do ocorrido, outros especialistas também concordaram que dificilmente haverá consequências para o processo em questão, como uma eventual anulação da sentença ou nova análise do caso em primeira instância. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) disse que “eventuais divergências em relação ao teor de decisões judiciais devem ser apresentadas por meio dos recursos previstos em lei”. A defesa de Mariana informou ter recorrido da decisão da absolvição em segunda instância. 

“Acredito que possa haver repercussões no âmbito administrativo, podendo a vítima também se insurgir contra aquele espetáculo dantesco. Ela tem o direito de fazer isso. Mas efetivamente isso só vai desaguar em uma mudança dentro do processo se houver prova de que foi determinante para a solução dada ao caso, o que poderia ser analisado em segunda instância”, explica o professor de Direito Penal da PUC de São Paulo Cláudio Langroiva. 

As fotos mencionadas pelo advogado e a vida pregressa da vítima não são usadas pelo promotor Thiago Carriço em suas alegações finais, onde sustenta o pedido de absolvição do empresário André Camargo Aranha. O promotor defende sua posição dizendo que não há qualquer comprovação de que o réu “tinha conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima para resistir a sua investida”. Ao não levar em consideração a posição do advogado, a posição abriria menos brecha para contestação em instâncias superiores.

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Ao comentar a mudança de versões do réu ao longo do processo, o promotor ressalta que não está ali para “julgar a honradez, honestidade ou credibilidade das pessoas envolvidas, mas sim e somente a configuração ou não do crime, com base em fundamentos técnicos que comprovem a sua ocorrência”. “A integridade das partes envolvidas (acusado, em especial) pode interferir nas provas decorrentes dos seus depoimentos, mas não possui qualquer relação com a credibilidade das demais provas do processo”, escreve Carriço.

Uma magistrada com 30 anos de experiência na área criminal, e que preferiu falar reservadamente ao Estadão, também acredita que o desfecho do processo não deve mudar. Ela diz ser comum atitudes como a de Gastão Filho e que já presenciou ataques direcionados até mesmo a crianças. “O advogado pode responder no comitê de ética do Estado, mas o fato não modifica tecnicamente a prova nesse processo”, opina. 

O professor Langroiva lembra que aos advogados cabem exercer a ampla defesa dos réus, sempre dentro dos princípios da moralidade e da ética na atuação da função. “O processo tem de ser equilibrado e respeitar todos que estão lá, em especial a vítima. Agora, de quem é a responsabilidade de se evitar desvios como o que vimos? Do juiz, a quem cabe a presidência e a condução do bom andamento do processo penal”, detalha. 

O Estadão mostrou nesta terça-feira, 3, que a Corregedoria Nacional de Justiça abriu procedimento disciplinar para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina, que presidiu a audiência de julgamento do caso. “Quando o advogado ultrapassa limites, a obrigação de intervir é do juiz. Isso não pode ser algo normal. Faltou a intervenção adequada”, diz Langroiva. “Vem de longa a discussão sobre revitimização da vítima no processo. Ela não está ali porque quer.” 

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“A mulher tem direito de tirar foto do jeito que quiser, nem por isso merece ser estuprada. Não se reconhece o direito da mulher de dizer sim ou não, o que é extremamente prejudicial à convivência social harmônica”, analisa a advogada Luiza Nagib Eluf. “A forma como ela foi tratada pelo aparato judicial de Santa Catarina me deixa indignada.”

Em nota divulgada nesta terça-feira, o advogado Gastão disse que os fatos “foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais”, que apontaram “relação consensual” e “foi atestado que ambos estavam com a capacidade cognitiva em perfeito estado”, conforme “peritos”. Ele não comentou os ataques à jovem na audiência.