Livro revela corrupção e crimes da polícia do Rio

Obra que relata os bastidores da polícia já causa polêmica

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Por Agencia Estado
Atualização:

Leia trechos do livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel, previsto para ser lançado em 8 de maio. A obra, que relata os bastidores da polícia do Rio e sua estreita relação com corrupção, tráfico de drogas e de armas, sessões de torturas, execuções sumárias e outros crimes, já causa polêmica. Leia reportagem completa na edição de sábado, 29, do Estado. Verdade "O Batalhão de Operações Policiais Especiais, BOPE para os íntimos, chega à praça de guerra. Estamos com gana de invadir favela, um puta tesão. Desculpe falar assim, mas é para contar a verdade ou não e? Você vai logo descobrir que sou um cara bem formado, com uma educação que pouca gente tem no Brasil. Talvez você até se espante quando souber que estudo na PUC, falo inglês e li Foucault. Mas isso fica para depois. Vou tornar a liberdade de falar com toda franqueza, e, você sabe, quando a gente é sincero, solta o verbo e nem sempre as palavras são as mais sóbrias e elegantes." Tarja-preta "Éramos quatro. Posicionamos nossas armas, avisamos que a casa estava cercada e mandamos os bandidos sair, um a um, com as mãos na nuca. Nada. Fuzilamos a casa, dispostos a derrubá-la. Foram uns quatrocentos tiros. Ficou de pé, vazada feito paliteiro. Um vagabundo avisou que ia sair. Deu os primeiros passes para fora. Delgado fez a mira e apertou o gatilho. O cartucho estava vazio, Ele ainda teve tempo de recarregar, enquanto o bandido aguardava, de pé, com as mãos na nuca, trêmulo e pálido. Agora, sim, deflagrou o tiro no peito do vagabundo. Nenhum sinal de vida no interior da casa. Era hora de invadir. Encontramos dois corpos entre os escombros e um sobrevivente. O cara estava desfigurado, mas vivo. A cena ficaria por muito tempo conosco, revirando o estômago e assombrando o sono. Cada homem da tropa a digeriu como pôde. Dois de nós acabaram recebendo o apelido tarja-preta por causa disso - esse apelido é dado a quem toma esse tipo de remédio. Mesmo para quem vê a morte todo dia, não foi fácil encarar a vida sob aquela forma. O infeliz perdera o queixo. Não tente imaginar. Você não conseguiria. Aliás, melhor mesmo que não consiga." Tortura "O que quero dizer é que não me envergonho de não me envergonhar de ter dado muita porrada em vagabundo. Primeiro, porque só bati em vagabundo, só matei vagabundo. Isso eu posso afirmar com toda certeza. Sinto minha alma limpa e tenho a consciência leve, porque só executei bandido. E, para mim, bandido é bandido, seja ele moleque ou homem feito. (...) O verbo é trabalhar. Quando o subordinado chama o comandante pelo rádio e pergunta, ´chefe, posso trabalhar o meliante?´, está pedindo autorização para fazê-lo cantar, ou seja, para fazê-lo contar o que sabe. Da mesma forma que o governador autoriza o secretário de segurança a autorizar o comandante da PM, a autorizar o policial, quando lhe diz: ´Faça o que for necessário para resolver o problema.´ O governador dorme o sono dos justos; o secretario descansa em berço esplêndido; o comandante repousa como um cristão; e o soldado, lá na ponta, suja as mãos de sangue. Se der merda, o bagulho estoura no elo mais fraco, é claro. Quem paga o pato é o soldado. Quem vai a juízo é o soldado. Quem freqüenta as listas das entidades internacionais de direitos humanos é o soldado. (...) Bati um rádio para o comandante. Contei que estávamos trabalhando o marginal havia bastante tempo, sem sucesso. Queria eliminar o vagabundo, mas tinha de ouvir meu superior, dadas as condições especiais que cercavam o caso. Ele mandou conduzir o sujeito à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que lida com menores. O jeito foi levá-lo. O cara estava branco feito uma folha de papel. Tinhoso. Diante da delegada, ele resmungou: ´Os policiais do BOPE me torturaram´, e mostrou os dedinhos roxinhos, com as unhinhas levantadas. A doutora delegada era uma profissional escolada e não nos decepcionou. Encarou o sujeito e emendou de primeira: ´Ah, é? Coitadinho... Tá doendo, tá, filhinho? Quer que chame a mamãe, seu filho-da-puta?´" Brizola "- Matar Brizola? - Isso mesmo. - Você está louco? - Não sou eu. Somos nós. A decisão foi do grupo. - Vocês estão loucos. - Loucos mas não covardes. - Você está me chamando de covarde? - Querer cumprir a lei é ser louco? Lutar contra o crime e loucura? Se é, somos loucos, sim. - Você está maluco. Desde quando matar o governador é cumprir a lei? - Se o governador e a antilei, se impede o cumprimento da lei, se bloqueia a luta contra o crime, se não deixa a polícia agir, se amarra nossas mãos... - E desde quando o Brizola amarrou as nossas mãos? - Ele nos impôs a cumplicidade, nos obrigou à passividade. Que policial sou eu? Que policial é você? (...) Eu concordava com o que cada um deles dizia, e os neurônios iam virando mingau. Só me restava agir. Fiquei responsável pela identificação de uma sala que servisse de quartel-general. Vetamos conversas telefônicas ou menção ao projeto fora do nosso QG clandestino. As regras eram rígidas: não chegaríamos juntos, nem fardados, não iríamos com nossos carros e nunca repetiríamos o trajeto para chegar ao ponto de encontro. O grupo ficaria restrito ao número mínimo, para reduzir os riscos de sermos delatados ou descobertos pela contra-inteligência. (...) Quando pensávamos no Sabino, pensávamos ao mesmo tempo na mãe do Sabino (Dona Rosália). Ela estava sempre conosco, indiretamente, espiritualmente. (...) Sábado à tarde, lá estávamos nós, o exército de Brancaleone. Debruçados sobre o mapa de Santa Teresa. (...) Sabino chegou atrasado. Isso jamais acontecia. (...)Sabino estalou a língua no palato. Ele costumava fazer isso quando estava nervoso. - Não vai dar. Vamos ter de abortar. - Como assim? Por quê? - Não me lembro quem disse o quê em qual ordem, mas todos nos precipitamos sobre o Sabino: como assim, abortar? - É isso mesmo, abortar a operação. Minha mãe acha muito perigoso. Acha uma maluquice. De novo, o silencio. Diego foi quem falou primeiro: - Você contou pra sua mãe? Sabino balançou a cabeça pra frente e pra trás, olhando para o chão e elevando o lábio inferior a altura do superior, até cobri-lo inteiramente - que era outra de suas manias. - Nesse caso, vamos ter de matar também sua mãe - Diego completou o raciocínio, com aquele espírito prático que o distinguia. A sala convulsionou-se num alvoroço de vozes e braços, todos de pé. Brizola morreu em 2004, de morte natural, sem saber que, no início dos anos 90, dona Rosália salvou-lhe a vida." À sangue frio "O ambiente era de revolta generalizada contra o Santiago. Ainda que ninguém tivesse tornado nenhuma atitude formal contra ele, havia uma tensão no ar, um clima de constrangimento. Nada mais. Pelo menos até o capítulo seguinte, que começou com a visita de três líderes da comunidade ao batalhão. Eles queriam formalizar uma denúncia na corregedoria. Como sempre acontece, a notícia ecoou pelos corredores em alta velocidade. O Santiago logo ficou sabendo. Para se certificar, tirou o nome do uniforme e foi à ante-sala da corregedoria. Entrou como quem não quer nada e perguntou aos três se estavam esperando atendimento para uma denúncia. Eles disseram que sim. Santiago encarou cada um dos três e respondeu com frieza profissional, como se fosse o anfitrião, pedindo que aguardassem mais um pouco. O oficial encarregado os receberia em alguns minutos. Saiu do batalhão e postou-se na primeira esquina, em um recuo do terreno, no final do longo muro que cercava a velha construção policial. Uma hora depois, passaram pela esquina os três homens do Andaraí. Um deles era mais alto e caminhava mais devagar. Ia um pouco atrás dos outros. Foi na cabeça desse último que Santiago acertou o tiro fatal. Avisou aos sobreviventes que, da próxima vez, não os pouparia e voltou caminhando para o batalhão. O clima, que já não estava bom, azedou, e o comandante decidiu punir o Santiago, exemplarmente, como gostam de proclamar as autoridades, quando não sabem o que dizer e o que fazer." Em mulher, não "Eles vinham de uma batida na boca de fumo da favela da Galinha, descendo de viatura uma ladeira deserta, os faróis desligados. Um carro subia. Era suspeito. Favelado não tinha carro importado. Enviesaram a viatura num movimento súbito, desembarcaram armados e jogaram o foco das lanternas no interior do carro. Duas aeromoças e dois tripulantes de conhecida companhia aérea, ainda em uniforme de trabalho, certamente chegando de uma viagem e, pelo visto, buscando decolar para outra. Atrapalhadas e nervosas, as moças não demoraram a confessar: iam, sim, comprar droga, mas não eram traficantes. Quem consome prefere o rótulo de viciado, porque tem o dom de converter o crime em doença e o perpetrador em vítima. Tudo bem, estava na cara que não eram mesmo traficantes. Mas nem por isso o tenente Diogo refrescou. Ele ficava furioso com essa cumplicidade hipócrita da classe media com os criminosos. Os maconheiros financiavam os bandidos e depois faziam passeata contra a violência. Mandou todo mundo saltar. Percebeu, com as antenas de policial experiente, que elas eram casadas; eles, não. Dedução: não são pares. Pronto, impôs-se a linha de trabalho. Escolheu a mais graciosa. - Escuta aqui, sua putinha. Quer dizer que vocês vieram fumar, cheirar e trepar com os garotões. O veado de seu marido vai gostar de saber que o seu vôo está apenas começando. Cadê o celular? Isso, liga aí pro chifrudo que eu quero falar com ele. A mulher chorava como se estivesse levando uma surra. - Você também - dirigiu-se à outra. - Pode ir digitando o número. Vamos fazer uma conferência virtual com os chifrudos. Chama o maridão, sua puta. Os rapazes intervieram, fazendo o tipo "vamos ser razoáveis". O gênero enfureceu Diogo. Naquele momento, qualquer palavra poderia ser a gota d´água. O problema é que, em vez de vir dos homens, a gota que faltava veio da mulher mais destemida, que resolveu topar a briga, dizendo que o tenente estava fazendo aquela cena para vender mais caro a liberdade. Levou uma porrada que a fez girar sobre o próprio eixo, antes de desabar. Tonta, foi erguida pelos rapazes, enquanto a fraquinha derramava-se toda, em prantos. A equipe de bordo caiu na real, mas o tenente atingiu seu próprio grupo, que achou o sopapo indecoroso, desnecessário, covarde. - Porra, tenente, numa mulher? O sargento Ávila traduzia o sentimento geral: "Numa mulher?" Fez esse comentário piedoso depois que os comissários tinham ido embora, liberados por Diogo, que também sentiu que havia exagerado a mão, por assim dizer. Meio culpado, despachou os suspeitos, desistindo dos telefonemas pedagógicos aos esposos cornudos. Moral da história: não se bate em mulher nem com uma flor? Negativo. Foi o próprio Diogo quem esclareceu: - Vocês ficam me olhando com essa cara e resmungando, mas eu queria ver se fosse uma negrinha de cabelo pixaim, malvestida. Duvido que me viessem com essas delicadezas. Atire em mim a primeira pedra quem jura que não faria galhofa da pobre-coitada e não faria questão de contribuir com um pontapé para a surra na negrinha."

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