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Livros da Mário de Andrade passam por desinfestação inédita

Brocas e cupins atacavam 31% dos exemplares da biblioteca; iniciativa vai custar R$ 700 mil

Por Edison Veiga
Atualização:

Há um vilão silencioso e cruel que habita as páginas de 31% dos livros da Biblioteca Mário de Andrade, a segunda maior coleção pública do País e a mais importante de São Paulo. Mas, como em uma história de final feliz, a morte desse vilão é certa. E deve ocorrer no próximo capítulo, quando os heróis empunharão as últimas armas de uma batalha que dura oito anos. Esse enredo de guerra e morte não está impresso em livro nenhum - sai em tinta e papel pela primeira vez agora, no Estado. O vilão, com seus vorazes arroubos de maldade, não integra nenhuma obra de ficção. São as brocas, insetos semelhantes ao cupim, que se alimentam de papel - e adoram algumas substâncias naturais encontradas na cola utilizada em processos de encadernação até os anos 70. O exército de heróis é formado por três frentes: os funcionários da biblioteca, consultores externos e uma equipe contratada como reforço extra para o derradeiro golpe, desferido a partir desta semana. Os primeiros vestígios de que o centenário acervo da Mário de Andrade - a biblioteca foi fundada em 1926, mas incorporou a antiga coleção da Câmara Municipal - padecia da infestação desses comilões insetos surgiram no ano 2000. "Eles vieram aqui por um conjunto de fatores. As janelas, por exemplo, ficavam abertas durante o horário de trabalho", reconhece a bibliotecária Rita D?Angelo, diretora da Divisão de Acervo. Uma solução paliativa foi adotada por um grupo de funcionários da instituição, capitaneado por Marluce dos Santos, chefe da Seção de Restauro e Encadernação. Eles passaram a folhear, página a página, cada um dos 200 mil exemplares da chamada Coleção Geral, que ocupa as estantes do 6º ao 14º andar - felizmente, os cerca de 50 mil títulos raros, melhor acondicionados no 1º, 2º, 3º, 4º e 5º andares, não foram atingidos. Cada bicho encontrado era arrancado do livro com uma pinça. E esmagado. Nesse trabalho ingrato e quase infinito, Marluce chegou a ter a companhia de outros nove colegas, dos 91 que trabalham na biblioteca. Em 2006, essa operação ganhou ares científicos. Começou-se a contabilizar o número de obras infestadas pela praga. Essas, antes de retornar à estante, foram embaladas em um saco de tecido e receberam uma etiqueta com um "I" (de "infestado"). Os livros imediatamente vizinhos também foram ensacados e rotulados - com um "R" ( "em risco"). Dezoito meses depois, os resultados aterrorizaram qualquer amante das Letras. De acordo com um relatório interno da instituição, há andares em que as brocas foram encontradas em mais de 70% dos volumes. No total, 31% do acervo estava infestado. "Graças ao processo constante de higienização, as brocas não destruíram completamente os livros", ressalta a restauradora Norma Cassares, presidente da Associação Brasileira de Encadernação e Restauro (Aber) e um dos profissionais que prestam consultoria à Mário de Andrade. "Mas desde 2005 eu vinha sugerindo um tratamento mais radical e definitivo." A solução veio. Ao custo de R$ 700 mil, bancados pela Secretaria Municipal de Cultura. No seguramente maior trabalho de desinfestação já feito em uma biblioteca no Brasil - e, acredita-se, no mundo - uma empresa especializada vai utilizar alta tecnologia para matar os insetos, sumariamente, asfixiados. E é por isso que, desde o início do ano, o corre-corre no prédio da Mário de Andrade, no comecinho da Rua da Consolação, no centro, tem um objetivo: colocar os 200 mil livros em 4 mil caixas de papelão, de modo sistemático, organizado e cuidadoso. Essas caixas começariam a ser levadas ontem para um galpão em Santo Amaro. Ali, uma moderna estrutura está sendo montada - e deve começar a funcionar ainda nesta semana - para a execução dos insetos. As caixas serão empilhadas e ficarão dentro de uma bolha plástica que abrangerá uma superfície de 110 m². "É um plástico especial, de 12 camadas", explica o especialista alemão em conservação e restauro Stephan Schäfer, proprietário da empresa, cuja sede fica nos Jardins, e professor da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Dentro da bolha, nada de produtos tóxicos. Nitrogênio é injetado, "expulsando" o oxigênio. "Durante 30 dias, vamos manter uma concentração de 0,1 a 0,3% de oxigênio", explica Shäfer, que receberá, pelo celular, boletins de meia em meia hora com informações sobre temperatura, umidade e níveis de oxigênio dentro da estrutura. O processo vai repetir-se outras duas vezes até que todo o acervo da biblioteca seja desinfestado. Aí novamente entrará em ação a equipe de Marluce, para limpar, página a página, os restos mortais dos bichos. Com a reforma da Mário de Andrade - a previsão é de que a instituição volte a funcionar no fim deste ano - todos os andares do prédio terão sistema de ar condicionado. As janelas ficarão vedadas. "Esperamos que as brocas virem história. E nunca tornem a atacar", torce o bibliotecário William Okubo, um dos protagonistas desta guerra que, parece, está chegando ao final feliz.

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