Milionário faz terapia social no Capão

Filho de Olacyr de Moraes toca projeto que atende mil pessoas

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Por Bruno Paes Manso
Atualização:

Filho do milionário e ex-rei da soja Olacyr de Moraes, o empresário Marcos de Moraes visitou em 1989 o projeto de missionários franceses em uma favela da Vila Prudente, na zona leste de São Paulo. Tinha 23 anos e encontrou crianças que não sabiam a idade e adultos que não conseguiam conjugar o verbo ser para contar o que faziam na vida. Anos depois, em uma viagem de férias, frustrou-se ao ver restos de lixo do mundo inteiro depositados em uma praia de Mianmar, que ele esperava ser paradisíaca. São fatos marcantes que ajudaram o jovem milionário a consolidar algumas convicções pessoais. Em sua mente inquieta, a morte de um amigo da família que deixou milhões podia ser motivo para novas perguntas que fazia a si mesmo. "Que diferença faz se tem ou não dinheiro depois de morto? Nenhuma. Melhor gastar durante a vida." Poderiam se tratar somente de reflexões excêntricas de alguém que sempre se sentiu deslocado em seu meio. Mas as dúvidas existenciais de Marcos também provocavam respostas e indicavam caminhos inovadores. Foi assim em 1998, durante a bolha da internet, quando, aos 32 anos, montou o Zip.Net, portal que oferecia e-mails gratuitos e, 18 meses depois de lançado, foi vendido por US$ 365 milhões à Portugal Telecom. Com milhões de dólares no bolso para serem usados antes de ir para o túmulo, Marcos começou a consolidar os planos de fazer um projeto social que o levaria a investir R$ 30 milhões em três bairros pobres da zona sul - Jardim Ângela, Jardim São Luís e Capão Redondo. O montante é dez vezes maior do que o investimento inicial feito para montar sua empresa na internet. Também o transformou no brasileiro que mais colocou dinheiro do próprio bolso em projetos sociais sem montar uma fundação, abater o investimento do imposto ou vincular a iniciativa ao nome de uma empresa. "Acho que outras pessoas não fazem o mesmo porque não sabem o quanto é bom." Como primeiro passo para tirar o projeto do papel, Marcos uniu-se ao seu antigo psicanalista, o médico e neuropsicanalista Yusaku Soussumi, com quem dividia visões semelhantes a respeito da condição humana. Filho de imigrante japonês, Soussumi é fundador do Centro de Estudos e Investigação em Neuropsicanálise (Ceinp). Define-se como um humanista e se diz influenciado pelas ideias do pai e do líder kardecista Chico Xavier, com quem conviveu por 20 anos. Em 2004, os dois fundaram o Instituto Rukha. Marcos foi buscar nas grandes empresas o pessoal que administraria os recursos investidos e viabilizaria o projeto. No ano seguinte, um grupo de educadores, a maioria moradores da zona sul, partiu para campo. Nos faróis dos Jardins e Pinheiros, bairros ricos da cidade, abordaram 566 crianças que faziam malabarismo, vendiam doces e pediam esmolas. Os dois filhos de Lucia, na época com 15 e 13 anos, foram abordados na Avenida Faria Lima. Ficaram desconfiados num primeiro momento. Mesmo assim, deram o endereço da casa em que moravam, no Jardim Jangadeiro, para que seus pais ouvissem a proposta que o Instituto Rukha tinha a oferecer. A família de cinco pessoas, pai, mãe e três filhos, receberia R$ 350 mensais ao longo de quatro anos e permaneceria no programa desde que as crianças não voltassem para a rua. Nesse tempo, todos os integrantes da família teriam de pensar e discutir com educadores projetos de vida. A proposta do Rukha é dar apoio para que eles consigam alcançar os objetivos traçados. "Primeiro, a gente ganha ajuda e dinheiro para, depois de um tempo, tentar andar com as próprias pernas", diz Lucia, a mãe das crianças, que dois anos e meio depois de ter entrado no projeto permanece com duros desafios pela frente. Aos 42 anos, ficou grávida. A filha de 18 anos já lhe deu uma neta, de 2. Para trabalhar com as famílias, o Rukha conta com a ajuda de uma ampla rede social que engloba 3.500 pessoas e já existia na cidade. Parceiros como o Senac, por exemplo, oferecem bolsas para cursos profissionalizantes. Somente em cursos pós-escola, o Rukha trabalha com 17 parceiras da zona sul, como a Casa do Zezinho, que oferece cursos que vão de informática a capoeira, passando por inglês, espanhol e orquestra sinfônica. Cada integrante das famílias atendidas pode ainda receber mais R$ 150 mensais para bancar despesas de cursos profissionalizantes. Neuropsicanalistas do Ceinp ainda atendem em serviços que vão de psicanálise a fonoaudiologia. "São dois objetivos principais: primeiro, conectar e ativar a ampla rede já existente na cidade. Depois, transformar todos os envolvidos. Não apenas as famílias, mas as ONGs, que passam a perceber como ganhar com as parcerias, e dos empresários, que vão entender que o papel deles para mudar a sociedade é fundamental", diz Marcos. Na primeira fase do projeto, foram cadastradas 102 famílias. Outras cem ingressaram no ano passado e hoje mais de mil pessoas estão sob o guarda-chuva do Rukha. Os educadores fazem relatórios de todos os assistidos. As primeiras 102 famílias mostraram bons resultados: 94% das crianças abordadas deixaram de trabalhar; 81% estão em atividades complementares à escola; 31% estão em cursos profissionalizantes. Mas situações-limite são inevitáveis. Como quando a mãe de uma das famílias atendidas esfaqueou o filho. Decisões duras precisaram ser tomadas, como acionar o Conselho Tutelar. Os educadores acompanharam mãe e criança ao conselho. A mãe passou a fazer análise e voltou a se relacionar com o filho. "Foi preciso levá-la a refletir por que agiu daquela forma. O autoconhecimento pode ajudá-la a se conectar melhor com a sociedade", diz Suossumi. Entre as cem famílias da segunda etapa, uma das escolhidas para participar foi a de Sílvia, formada no magistério, mas que não trabalha porque teve nove filhos, hoje com idades entre 8 e 15 anos. Rubens, marido de Sílvia, é pastor evangélico e chegou a gravar um disco com músicas que compôs, mesmo sem saber tocar nenhum instrumento. Quando o pai põe o disco para tocar, todos os filhos sabem a letra de cor. Eles já recebem R$ 350 mensais. Terão mais três anos para tentar se estruturar. "Para o bem de todos. É a filosofia do ganha-ganha-ganha, em que todos os participantes saem lucrando", diz Luiz Alfaya, diretor do Rukha, que foi aluno do Santo Américo e trabalhou com publicidade antes de mergulhar na periferia. Três anos depois de iniciados os trabalhos, Marcos concordou em falar sobre os resultados e métodos do projeto. Vestindo calça jeans, moletom e três colares de contas coloridas que ganhou de um amigo lama e de Dagmar Gaurrox, fundadora da Casa do Zezinho, preferiu não sair na foto. Não queria chamar mais atenção do que o projeto. Provavelmente, pelo mesmo motivo, vai ficar insatisfeito com o título da reportagem.

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