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Minha vida na escola

Por Agencia Estado
Atualização:

Durante o trabalho de campo sobre o ensino médio nas escolas públicas da Grande São Paulo, pesquisadores do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial conheceram Sandra da Luz Silva, aluna de 17 anos de uma escola estadual no Capão Redondo, zona sul. Impressionados com a jovem, convidaram-na para trabalhar no instituto. Mais tarde, encomendaram a ela um relato do cotidiano de sua escola em 2001. O resultado foi um documento valioso, publicado na série de Braudel Papers sobre o ensino no Brasil , com um artigo de Luiz Marques, professor de português no Capão Redondo. O diário de Sandra dá uma visão rara e autêntica do que se passa nas escolas de regiões carentes e revela a riqueza de talentos escondida na periferia das grandes metrópoles. Diário de aulas Sandra da Luz Silva Meus pais vieram de Pernambuco para São Paulo há 25 anos. Meu pai já foi açougueiro, vendedor de doces, e uma vez montou até uma mini-fábrica de cocadas. Não deu certo, mas ele tem até hoje as marcas no corpo deixadas pela cocada que respingava, fervendo no fogo. Desistiram de fazer cocadas e montaram uma distribuidora de ovos. Era tão cansativo quanto às cocadas. Tínhamos que limpar todos os ovos, um por um. A distribuidora não deu certo. Meu pai vendeu a parte dele e guardou todo o dinheiro debaixo da cama, amarrado em uma sacola. Minha mãe certa manhã foi lavar o quintal e um ladrão entrou na minha casa, enquanto outro vigiava. Eu tinha nove anos e vi tudo. Fiquei vigiando por debaixo da cortina que dividia a sala do quarto. O ladrão pediu o dinheiro para o meu pai e engatilhou o revolver na cabeça da minha mãe. Meu pai entregou todo o nosso dinheiro. Ficamos com muitas dívidas, minha mãe com depressão, aluguel atrasado, eu não queria saber de escola. Foi uma época terrível. Conseguimos superar. Mudamos para o Capão Redondo. As coisas melhoraram um pouco. Conseguimos alugar uma casa, eu me matriculei numa escola perto. Meus pais voltaram a fazer algodão doce à noite para sustentar nossa família. De segunda a quinta, eles começam a fazer os algodões por volta das 15h e, dependendo da quantidade de encomendas, até às 3h da madrugada. Nos fins de semana eu ajudo a enfeitar os algodões, dando assim menos trabalho para a minha mãe. Lembro-me de que, enquanto minha mãe entregava os doces quando eu e minha irmã éramos pequenas, ela trazia antigas enciclopédias (que tenho até hoje) e que ela trocava por doces ou comprava nos sebos de Santo Amaro. Meus pais nunca sentaram para conversar sobre escola, mas sempre deram apoio ao estudo, já que os dois não puderam estudar. Papai sempre disse que antes de morrer vai ver as suas duas filhas formadas. Assim, fico na escola. * * * Quarta-feira, 14 de fevereiro As aulas começaram há seis dias, só que até agora nenhuma matéria foi dada. Como o horário das aulas ainda não foi definido, os alunos ficam nos corredores até as 19h20, querendo saber para que salas irão. Outros preferem ficar do lado de fora da escola, escutando o som que vem de um carro estacionado. Na sala de português não há iluminação suficiente e há goteiras nos corredores. Quando as aulas começam os alunos reclamam muito quando os professores usam a lousa. Por enquanto estão apenas fazendo revisão. A professora de português, Marina, passou um texto sobre narração que encheu a lousa. Depois da primeira aula resolvi sentar na parte do fundo. Dois alunos sentados atrás de mim conversavam sobre armas: - Seu pai ainda tá com aquele Calibre 12? - Tá sim, quer comprar? - Quanto ele quer? - R$1.500. - Você tá louco! E aquela arma da polícia, que atira bolinha de borracha, que eu não sei o nome - quanto ele quer? - R$ 350. No início da conversa, pensei que fosse brincadeira. Sendo eu nova na sala, talvez quisessem me impressionar. Não tenho certeza. Quando a professora de química disse que não ia deixar sair da sala para fumar, os meninos disseram: "Aqui ninguém fuma, só cheira!". Quando o sinal bateu para a última aula fui até o orelhão que instalaram na escola. Alguém já tinha quebrado. Às 22h fui embora. Não tinha luz na rua. Quinta-feira, 15 de fevereiro Hoje foi uma noite tranqüila. Mais da metade dos alunos faltou. A primeira aula foi com a professora de biologia, que escreveu na lousa inteira e fez de tudo para chamar a atenção dos alunos. Tentou coreografias, gestos, mímica, enfim, tudo para despertar a atenção dos poucos alunos que ali permaneceram sem abrir a boca durante as quatro aulas. Um aluno entrou na segunda aula sem caderno e com forte cheiro de cigarro. Sentou no fundo e permaneceu calado. A professora de português perguntou como se fazia uma dissertação, mas ninguém respondeu. E a aula permaneceu assim: a professora perguntava e ninguém respondia. No intervalo, a neblina causada pelo cigarro cobria o pátio. Consertaram o telefone. O sinal bateu às 23h. Terça-feira, 20 de fevereiro A rua em que moro continua sem iluminação. Mesmo assim fui à escola. Parece que a escola está ficando mais rígida. O sinal bate às 19h horas e o portão fica aberto até 19h15. Se alguém passar dessa hora não entra mais nem para a segunda aula. Ficará com falta em todas as matérias, segundo o vice-diretor. Não se entra de blusa sem manga, nem mostrando a barriga. Só calça jeans comprida. Mas isso está assim apenas porque é o começo do ano. Quando as aulas estiverem acabando, muitos virão com a roupa que quiserem. Deu para perceber que a esperança de boa parte dos meninos é ser cantor de pagode ou rap. Eles não têm nenhum curso, a escrita é péssima, ler então nem pensar. Há dificuldade de compreensão e nunca trabalharam com carteira assinada. Muitos dos meus colegas de classe, principalmente os meninos que começam a trabalhar mais cedo, fazem "bicos" como ajudantes de pedreiro, carregadores de sacolas e coisas parecidas. Cada um faz o que pode para ter algum trocado no bolso. O professor de física continua dando revisão. A professora de Geografia nem fez chamada. Se os alunos não a lembram muitos ficam com falta. As duas últimas aulas eram de matemática. Alguns alunos sabiam que a professora não viria e comemoravam isso. Mas, para a tristeza de muitos, teve professor substituto. Na minha opinião, seria melhor se não tivéssemos professor, porque ficamos aqui duas aulas sem fazer nada, sem matéria, nem revisão - apenas conversando. É que a direção prefere que o aluno fique dentro da escola a ir para casa. Assim responde chamada e no final do ano não precisa repor essas aulas "perdidas". O sinal bateu às 23h. Sexta-feira, 23 de fevereiro Todos os alunos combinaram faltar na sexta-feira, já que o feriado do Carnaval na escola se prolongaria até a terça-feira, dia 6 de março. Terça-feira, 6 de março Devido à morte do governador Mario Covas, as aulas foram suspensas hoje e dia 07. Quinta-feira, 8 de março 19h20. O portão ainda estava aberto e os alunos iam entrando. A primeira aula foi de geografia. A professora usou a aula inteira para passar um trabalho em grupo que vai valer a média do primeiro bimestre. O trabalho consiste em escolher um país e comentar sobre o clima, vegetação, oceanos, lagos, formação étnica e colonização. Bateu o sinal. A aula seguinte era de Inglês. Entramos na sala e ficamos uns 30 minutos conversando. Aí a professora pediu que fizéssemos o exercício que já estava na lousa. Foi fácil, porque ela já tinha dado uma tabela com verbos irregulares. Bateu o sinal para o intervalo. Era a aula de história quando soltaram duas bombas no pátio. As bombas não são para machucar, só pra assustar. O professor não nos deixou sair, mas também não falou nada, apenas perguntou se tínhamos alguma dúvida sobre a matéria passada, porque nos daria trabalho. Terça-feira, 13 de março Quando entrei na sala no mesmo horário, o professor de física estava escrevendo na lousa. Explicou como se resolviam os exercícios e passou mais três para fazermos. A aula seguinte seria a de geografia, mas a professora faltou. A substituta que nos deu aula hoje era nutricionista. Quando entramos na sala a lousa estava cheia. Eu não quis copiar a matéria porque não tinha nada a ver com geografia e sim com biologia. Soltaram novamente bomba no mesmo lugar. Fez um buraco imenso na parede. Grande o suficiente para 2 pessoas passarem. Terça-feira, 20 de março Como sempre, o portão ficou aberto até às 19h15, e a primeira aula só começou por volta das19h25. A professora de português falou a aula inteira sobre caricaturas e quadros de artistas famosos. Quando ela perguntava qualquer coisa ninguém respondia nada, como sempre. Pelo menos 3 adolescentes grávidas passaram por mim no intervalo. Uma, inclusive, me entregou um convite para seu "Chá de bebê". Até eu fiquei com raiva na aula de matemática. A professora Fátima está dando uma regra chamada "distributiva", algo que aprendemos na 8ª série. Ela explicou 4 vezes como se usava essa regrinha, e assim foram-se mais 50 minutos perdidos. Pelo menos alguma coisa para salvar a noite: a aula de história. O professor sempre aparece com alguma coisa que estimule os alunos a usarem o cérebro. Dessa vez ele trouxe cópias xérox para todos da proposta de um deputado do PT, que daria 50% das vagas nas universidades públicas e estaduais de São Paulo a alunos carentes. O professor ficou 30 minutos falando sobre os benefícios que essa lei traria se aprovada. Suas perguntas ficaram comigo: - Já pensou se apopulação mais humilde tivesse acesso às universidades, num país onde muitos não prestam vestibular porque não têm condições de pagar uma faculdade? Já pensou se o povo tivesse acesso à cultura e soubesse escolher melhor quem governa nosso país? Ele também vai organizar um abaixoassinado em favor deste projeto. Vai ser muito difícil, mas vamos tentar. O sinal bateu às 23h. Quarta-feira, 21 de março A aula de português começou com a professora insistindo em falar somente de literatura. O problema é que ninguém entende nada, ou melhor, ninguém presta atenção. Não há interpretação de texto na classe. A aula seguinte é de química. Finalmente, vamos ter algo de interessante para fazer aqui: hora de prova. Fiquei decepcionada. O que chamaram de prova foram só três exercícios para fazermos em dupla e consultando caderno e calculadora. Gosto da aula de biologia porque é produtiva. A professora sempre pára qualquer atividade para tirarmos dúvidas. Acho que esse ano eu até vou aprender alguma coisa. Pelo menos em biologia, física e, talvez, história. O sinal bateu às 23h. Quinta-feira, 22 de março Quando entrei na sala de aula era 19h20. Normalmente entro mais cedo, mas fiquei falando com o professor de história a respeito da campanha envolvendo escolas estaduais e municipais a favor de cotas nas universidades estaduais para alunos das escolas públicas. Minha segunda aula foi de inglês. A professora já tinha deixado matéria na lousa. Ela pediu somente que copiássemos, apagou metade e passou um pouco mais. Para os que começaram a reclamar achando que era muita matéria, ela avisou que era a matéria da próxima aula. Depois do intervalo, tivemos história. O professor falou a aula inteira sobre aquela proposta do deputado. Ele também está dando trabalho a respeito disso, pedindo para escrevermos nossa opinião, o que precisa ser feito etc. Durante a última aula - química- eu queria ir embora. A professora é dominada pelos alunos. O barulho é insuportável. Uns começam a berrar, outros a imitar cachorros, bater na carteira, assobiar, xingar a professora. Gritam que ela não sabe dar aula e que seu diploma foi comprado. Só que todos queríamos saber a nota da prova. Eu fiquei surpresa por ter tirado "S" (são apenas três notas. PS, Plenamente satifastório; S, Satifastório; NS, Não satisfatório). Alguns alunos também haviam tirado "S" e a maioria "NS". A professora ainda disse que éramos a pior sala porque tínhamos ido muito mal. Mas ela que tinha se enganado resolvendo errado a conta do gabarito. Quando percebemos, você pode imaginar, a gritaria foi em dobro... Até tapei os ouvidos. Antes mesmo de bater o sinal, muitos alunos tinham saído da sala. O sinal bateu às 23h. Segunda-feira, 26 de março Sinceramente eu não tenho a mínima vontade de ir à escola, tanto assim que não fui na sexta-feira passada. Hoje a primeira aula foi com a professora de português. Ela enche a lousa, quando vai apagar não pergunta se copiamos. O barulho torna tudo pior. Hoje ela decidiu dar prova na sexta-feira. Todos começaram a reclamar, e ela insistiu gritando "vai ter prova!". A aula de inglês é mais tranqüila: a professora não reclama de nada e passa atividades para fazermos em casa. Faltei na aula de química para ir à sala de história fazer uma prova que havia perdido. A prova tinha somente uma questão, mas a resposta era imensa. Foi a aula inteira para responder apenas uma pergunta. Pelo menos é melhor do que os trabalhos em grupo que você acaba sempre fazendo sozinho. Terça-feira, 27 de março O professor de física passou algumas questões para resolvermos. A segunda aula foi vaga porque não tinha professor. A maioria dos alunos desceu para o pátio. A professora de matemática comentou que amanhã haverá uma convocação de pais e mestres para discutir sobre o comportamento dos alunos. Segundo ela, como os estudantes não respeitam os professores, os pais daqueles que ainda são menores vão ter que assinar um termo de responsabilidade. Fui embora às 22h30. Segunda-feira, 2 de abril Quando entrei na aula de português, a professora estava terminando de corrigir as provas, e agora estou entendendo o que ela quer nos ensinar. Quer que aprendamos a gostar de arte, como pinturas, livros, teatro, enfim tudo ligado à cultura. Por isso vai nos levar neste mês a algum lugar onde se vendem quadros. Em seguida faremos um trabalho, escrevendo sobre o que vimos em cada tela. Na aula de matemática, houve muitas notas baixas e também muitas reclamações dos alunos, porque a professora não quer explicar a matéria novamente. Não tivemos a última aula porque houve reunião dos professores. Saímos às 22h. Quarta-feira, 4 de abril Estávamos na aula de português quando minha amiga Cleuzinha entrou na sala dizendo: - O namorado da Cristina morreu! Alguns ficaram espantados, outros fizeram gracejos. A Cleuzinha começou a contar como tudo havia ocorrido: - O cara vacilou. Acabou cheio de bala. Ele e o amigo dele. O amigo, que estava na garupa da moto, morreu para não haver testemunhas. Ninguém mandou vacilar. Só tenho dó da Cristina que não come nem consegue falar... Passamos mais da metade da aula de física só falando do falecido enquanto o professor passava matéria na lousa. As últimas duas aulas foram de matemática. A Suzana, coordenadora da escola no período noturno, entrou na sala distribuindo panfletos sobre o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) que vai ser aplicado a todos os alunos que concluírem o 3º ano do ensino médio. Os alunos não têm que fazer este exame. Segundo ela, esta prova tem como objetivo mostrar como anda o ensino nas escolas públicas e particulares, não afetando em nada o aluno. Eu comentei em voz alta que essa prova era perda de tempo, pois todos nós sabemos que o ensino nas escolas públicas está em decadência. Ninguém se opôs. O sinal bateu às 23h. Quinta-feira, 5 de abril Quando cheguei à escola, faltavam alguns minutos para a aula de química. Do lado de fora da escola sempre há muitos alunos que vêm direto do trabalho e que muitas vezes não conseguem chegar para assistir à primeira aula. Todos estávamos ali esperando o portão abrir. Quando o sinal bateu, a inspetora do período noturno abriu o primeiro portão. No segundo portão, feito de grade, tinha outra inspetora fazendo com que passássemos um por um. Só pôde assistir à segunda aula quem trouxe uma declaração comprovando que trabalha e eventualmente pode chegar atrasado. Todos os alunos que trabalham e trazem a declaração possuem uma carteirinha com foto que têm de mostrar sempre, antes de entrar na escola. Já ia direto para sala de química quando vi todos os meus colegas no pátio. Uma colega me perguntou pra onde eu ia, e respondi que para a sala de química. Ela começou a rir e disse que a professora tinha faltado. Queríamos que o professor da aula seguinte se adiantasse para sairmos mais cedo. Mas o diretor não deixou. Ficamos no pátio conversando sobre ônibus, sobre o caos que é ir e voltar, e as coisas engraçadas que sempre presenciamos no transporte. Na semana passada, por exemplo, fiquei 3 horas e 15 minutos dentro do ônibus. Um homem tirou uma garrafa de café e um pãozinho dizendo estar sempre preparado para tudo. A coordenadora passou na sala avisando que amanhã não teremos a primeira aula. O motivo, por enquanto, ninguém sabe. O sinal bateu às 23h. Sexta-feira, 6 de abril Não tivemos a primeira aula. A segunda aula seria de química, se a professora tivesse vindo. Como faltou, ficamos no pátio conversando. Quando algum professor falta, os alunos, principalmente aqueles que trabalham, dão graças a Deus porque estão cansados e querem ir embora. Ninguém reclama. As outras duas aulas foram de inglês e história. A professora de inglês iria dar uma aula diferente: com música. Ela já tinha até dado a letra da música que iríamos ouvir. Não deu certo: todas as tomadas das salas estavam queimadas. Segunda-feira, 9 de abril Cheguei na escola às pressas porque eu tinha prova na primeira aula. Quando entrei na sala, a professora ia aplicando a prova. Houve um aluno que apenas colocou o nome na prova, pois não sabia nada. A professora insistiu, pediu que tentasse. Ele saiu da sala sem nada tentar. A última aula foi de história. Tem um aluno que faz todo tipo de pergunta sem cabimento para que o professor responda e perca tempo. Uma vez ele perguntou para o professor de história se ele sabia sobre uma das principais organizações de presos de penitenciaria, o PCC, Primeiro Comando da Capital. O professor levou quase metade da aula explicando. Mas hoje o professor não estava com paciência de explicar coisas que não tinham a ver com a matéria. Gosto dele. Ele foi o único que pediu apostila neste semestre. Ele mesmo recolheu o dinheiro e tirou xérox. Custou só R$ 1,40 para cada um. Quarta-feira, 11 de abril Quando entrei na sala, a professora de português estava na lousa passando um poema. Era para escrever sobre o que tínhamos entendido da poesia, o que ninguém fez. Todos os alunos ficaram conversando enquanto a professora passava de mesa em mesa para ver quem estava fazendo. Essa professora é boa pois nos dá muitas chances de aprender. Ainda bem que ela é assim. Importa-se com os alunos. A professora de química faltou mais uma vez. Acho que vamos ficar sem a professora de química como havíamos ficado sem professor de física no ano passado. Mandaram para nossa sala uma professora substituta. Não fizemos nada! Ela não tinha nem idéia de química e ainda nos mandou "ler a apostila". O problema é que não temos apostila de química. Ela não sabia nem o que estava falando. Eu resolvi sair da sala na última aula, para ver quem estava no portão de entrada. Havia vários garotos encostados na parede com o intuito de "matar aula". A inspetora que "cuida" dos alunos, mantendo a ordem na escola, não deixou ninguém sair. Todos nós voltamos para a sala. Alguns alunos ficaram debruçados sobre a mesa, pois estavam cansados. Quando faltavam alguns minutos para bater o sinal, a maioria dos alunos saiu da sala, mesmo com a professora ainda explicando. A professora pediu aos que permaneceram para que não saíssem, dizendo que a escola é nossa única oportunidade de ter uma vida melhor... Mas não adiantou. Quase todos saíram. O sinal soou às 22h55. Segunda-feira, 17 de abril Percebi que há vários blocos de tijolos na entrada da escola. Ao lado da sala de matemática tem um buraco de mais ou menos 40 centímetros. Esses blocos são provavelmente para tapar os eventuais buracos que vêm surgindo pela escola, feitos pelos alunos bagunceiros. O banheiro dos homens tem um rombo no teto, por onde alguns alunos fogem da escola. Digo que eles "fogem" porque, quando se entra na escola, não se pode mais sair, porque o portão fica trancado. A professora de matemática disse que eles tiveram reunião sobre um projeto que está sendo feito em todas as escolas para os pais virem um dia com seus filhos às aulas. A professora não detalhou muito, mas disse que esta iniciativa estava aparecendo na televisão de vez em quando. Amanhã vão fazer uma reunião apenas com os monitores da sala sobre algumas reclamações que vêm sendo feitas. Alguns alunos do 3º ano do ensino médio estão reclamando sobre a bagunça nas salas de aula e pediram à direção da escola que tomasse providências. O engraçado é que toda semana tem reunião e os que participam nunca nos comunicam o que acontece lá. Quinta-feira, 19 de abril A professora de português, Marina, deu um poema de Augusto dos Anjos, um escritor que se chocou com a tradição literária da sua época. Pediu, como dever de casa, que déssemos nossas opiniões em uma redação baseada no poema. Mas em uma sala de 48 alunos apenas quatro tinham feito o dever. A professora passou olhando caderno por caderno com o seu diário de classe, em que os professores anotam tudo - notas, comportamento, faltas etc. Ela só deu nota para quem tinha feito, mas como é muito boa, deu chance para os que não fizeram e falou que iria esperar até a aula seguinte. Sexta-feira, 20 de abril Um casal na porta da escola começou a discutir e o rapaz, Carlão, que é meu amigo e estuda na mesma sala que eu, bateu três vezes com um caderno grosso no rosto da sua ex-namorada. A garota ficou por alguns instantes quieta, e depois foi pra cima do Carlão. Ele bateu tanto nela, que deu pena. Uns garotos da escola apartaram a briga. Ela saiu correndo chorando e ele foi atrás. Entrando na escola vejo o vice-diretor com um jeito de quem está preocupado. Perguntei o que ele tinha e me respondeu que alguém tinha derrubado o portão de entrada. E eu nem percebi. Todos nós tínhamos combinado de conversar com a coordenadora, mas não foi preciso. Ela foi até a nossa sala. Quando a professora de biologia se retirou, começamos a contar os problemas que estamos tendo com os professores que faltam. Ficamos a aula inteira conversando sobre isso e a coordenadora disse que iria tomar providências e que depois retomaríamos essa conversa. O sinal bateu às 23h. Segunda-feira, 23 de abril Fui correndo para escola com o objetivo de chegar na primeira aula. Chego na escola e fico sabendo que a professora faltou. Ficamos no pátio conversando até bater o sinal. Fui para a sala de inglês. Hoje a professora estava respondendo aos alunos com muita grosseria. Eu reclamei que a sala estava cheia de insetos e ela disse que não eram os insetos que estavam atrapalhando a aula, e sim certos alunos. Dei graças quando a aula acabou. No intervalo, passa a garota que brigou na porta da escola com o Carlão, com a mão engessada. Eu estava com alguns colegas ainda no intervalo quando ele também chegou. Perguntaram para ele: - Por que você quebrou os dedos da "Dedeu"? Dedeu é o apelido da menina que apanhou. Ele respondeu, saindo em seguida irritado: - Eu não quebrei os dedos dela. Ela que quebrou eles sozinha! Achei um absurdo. Isso está assim porque não casaram ainda. A tendência é piorar. Não sei quem é o pior: o Carlão ou a Dedeu. Ele por bater e xingá-la. E ela, porque depois de tudo, ainda vai atrás dele. Mas ninguém se mete nessas brigas porque normalmente eles acabam voltando. Terça-feira, 24 de abril Ontem foi um dia especial para alguns alunos: o "Dia Nacional da Família na Escola". Centenas de escolas abriram seus portões para os pais de seus alunos. Hoje pude ver o maior envolvimento dos pais. Os alunos que vieram acompanhados mostram as melhores notas e têm a auto-estima elevada, pois não são todos os pais que podem acompanhar seus filhos. Fica mais difícil no horário noturno, pelo menos no Capão Redondo, onde a maioria dos pais sai de madrugada para trabalhar. A escola estava praticamente vazia, poucos alunos vieram com seus pais. Eu mesma vim somente para fazer o relatório, pois meus pais trabalham à noite e não puderam me acompanhar. Foi uma noite tranqüila. Não houve lições, mas sim uma aula diferente. Os professores falaram sobre a importância dos pais acompanharem o desenvolvimento de seus filhos. Ofereceram lanches e alguns jogos para estimular o raciocínio. Não apareceu nenhum pai nem mãe de bagunceiro. No próximo semestre haverá novamente esse encontro. Todos foram dispensados às 20h. Sexta-feira, 27 de abril Era 19h25 e na sala de aula havia apenas 6 alunos em uma sala onde normalmente há 48. Estou sentada no meio da sala e observo que aos poucos eles vão chegando e se acomodando. A professora de biologia começou a dar aula às 19h30, fazendo a chamada com apenas 16 alunos presentes. Em seguida escreveu um pouco na lousa e nos 15 minutos que restavam para acabar explicou a matéria. Faltando 5 minutos para bater o sinal o pessoal que senta no fundo começou a reclamar dizendo que faltavam poucos minutos para o sinal bater e ameaçaram sair da sala, ou melhor, fazer a "fuga". Na fuga, eles se levantam e ficam com o caderno em mãos perto da porta - quando a professora fica de costas para a lousa, a maioria dos alunos que senta no fundo sai sem a permissão da professora. A próxima aula é de português. Desde o dia 19 a professora está dando (cobrando) a mesma coisa - uma redação sobre nosso ponto de vista sobre um poema de Augusto dos Anjos. Como no primeiro dia, hoje não fiz nada. Estou perto da porta, no canto da sala, e percebo que a conversa é geral. O barulho incomoda aqueles que querem fazer algo. Os alunos que não fizeram pedem o caderno emprestado para os mais aplicados para copiar e tentar enganar a professora. Dessa forma, ganham nota sem fazer nada. As duas aulas de português correm assim: barulho, ninguém fazendo nada de produtivo. A professora dá chance demais para os alunos recuperarem a nota e muitos jogam essa oportunidade fora. A última aula foi avaliação de matemática. Última nota para fechar o bimestre. Quando entrei na sala, já havia muitos alunos. Fiquei sentada no fundo e a professora começou a distribuir as provas. Percebi que um colega que estava sentado ao meu lado não fez nada. Apenas colocou seu nome e saiu da sala, nem ao menos tentou fazer. Acabei em 30 minutos, deu até tempo de revisar. Fui para casa às 22h30. Quinta-feira, 3 de maio A caminho da escola encontro uma professora substituta que se espanta: - O que você está fazendo aqui? Você não tem a primeira aula hoje. Fiquei perplexa. Porque eles não avisam? Talvez tivessem avisado, mas não escutei devido ao barulho. Porque nunca falam o motivo de não haver a primeira aula? Não há no momento nenhuma explicação. Fiquei sentada de frente para um grupo de seis garotos no intervalo. Todos eles se vestiam da mesma forma: calça folgada, touca e camiseta bem larga para fora da calça. Um deles segurava o cigarro como se segura um cigarro de maconha. Posso afirmar isso porque muitas pessoas que conheço já me mostraram. Minha colega ficou muito assustada quando viu o seu primo no meio deles. Não fizemos nada na aula de química. A professora simplesmente fez chamada e ficou lá sentada por 50 minutos. A última aula também não foi muito diferente: o professor de história leu um texto por 10 minutos, depois agradeceu a todos pela atenção (coisa difícil de se obter em sala ultimamente) e passou a fazer outras coisas. O sinal bateu às 23h. Quinta-feira, 17 de maio Fui direto pro fundo da sala, olhando diretamente para as mãos de um aluno. Ele brincava com uma caixa repleta de balas para uma arma pequena conhecida como "22". Já cheguei perguntando: - De quem são essas balas? Ele só me respondeu que é de uma "mina". Uns cinco alunos ouviram isso sem dizer nada. Apenas continuaram olhando para a lousa como se aquilo fosse algo comum. Às 19h15 chega uma aluna que pergunta para ele: - E aí ! Trouxe o esquema? - Tá aqui, você não acreditou que eu ia trazer... Vai usar quando? - Você trouxe a arma? - Você não pediu, mas se quiser, é nóis... - Beleza. Como uma menina que eu achava tão quieta e trabalhadora podia ser assim! O professor continuou explicando a matéria e ela saiu da sala. Depois de quatro minutos voltou conversando no celular. Ela sentou na minha frente, com o seu cabelo comprido cobrindo o celular. O professor nada percebeu. Perguntei a ela quem seria a vítima - o próximo a morrer, mas ela desconversou dizendo que não era ninguém. Terça-feira, 22 de maio Nessas últimas duas semanas praticamente não há aulas. Os professores faltam muito, acumulam matéria e depois querem dar em apenas uma aula o que era pra ter sido dado em duas semanas. A primeira aula foi de física. Quando eu descia as escadas para ir à sala, um aluno me disse que o professor ainda não havia chegado. Esperamos encostados na grade. Quando chegou, o professor passou a matéria na lousa e fez a chamada. Enquanto passava a nova matéria, um grupo que estava sentado no fundo da sala conversava sobre assuntos banais. E assim foi toda a aula. Na segunda aula, os alunos já estavam na expectativa pois a professora de geografia não havia chegado e sabiam que a professora de matemática havia faltado. Assim não teríamos as duas últimas aulas. Para a tristeza de muitos e alegria de poucos, a professora chegou bem no momento em que o portão estava cheio de alunos indo embora. Todos subimos para a sala, faltando apenas vinte minutos para a aula acabar. Ainda assim, a professora saiu da sala e dois alunos fecharam a porta, encostando nela o armário para que ela não pudesse voltar. A professora, ao voltar, começou a bater na porta, mas ninguém abriu. Muitos começaram a rir. Depois de alguns minutos, abriram a porta e a professora entrou com um sorriso amarelo. Fez a chamada e saímos faltando 10 minutos para as 21h. Quinta-feira, 24 de maio Nas últimas duas semanas praticamente não tivemos aula. Sinceramente só estou indo à escola porque preciso do diploma para prestar vestibular. Muitos pensam assim também. Perguntei porque não tinha professor na escola e me responderam que alguns estavam em curso, outros doentes e alguns de licença. A segunda aula, de inglês, foi uma palestra sobre emprego. A palestrante veio oferecer um curso profissionalizante em áreas como hotelaria, eletrônica e montagem e manutenção de micros, com um custo baixo. A sala tinha poucos alunos. Percebi o interesse de muitos alunos, mas poucos irão fazer. Segunda-feira, 28 de maio Estou saindo de casa no mesmo momento em que meu vizinho "Ceariba", de 15 anos. "Ceariba" é um apelido que significa Ceará com Paraíba. Como ele está segurando um caderno, pergunto se estuda na minha escola. Ele diz que sim. O engraçado é que eu nunca o vi por lá. Ceariba diz que só assiste à primeira aula de vez em quando, raramente ficando até às 23h na escola. Ele prefere ficar lá no Irene, um bairro onde as escolas são mais agitadas. - Como assim mais agitadas? - perguntei - Lá no Irene os caras são gente fina. Aqui nessa escola, só tem os maconheiros querendo ser o que não são. Eu prefiro roubar a usar droga, pelo menos roubando você ganha dinheiro e é respeitado, sem prejudicar sua saúde. Agora o nóia (rapaz que usa maconha e fica o dia inteiro alucinado) só apanha e tem mais chance de morrer. Antes, quando eu era pichador, apanhava direto da polícia, quase todo dia. Quando estávamos chegando perto da escola olhou para alguns garotos parados perto do córrego, dizendo: - Eu odeio essas carinhas! A professora de inglês corrigiu os exercícios e falou sobre o "Dia Diferente" que existe todo o mês na escola. É um dia em que os alunos têm atividades que normalmente não existem na escola, como música, gincana, teatro, desfile etc. O Dia Diferente vai ser na sexta-feira (dia 1o de junho). Vamos ao teatro. A entrada do teatro é cinco reais, e quem for assistir ganha pontos. Esses pontos servem como incentivo para os que não gostam muito de teatro. Poucos alunos se interessaram. Na minha sala apenas 11 alunos de uma turma de 48 se registraram. Eu vou com certeza! Quarta-feira, 6 de junho A caminho da escola, na viela, o cheiro de maconha misturado com perfume ficava mais intenso à medida que eu me apro

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