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'Muçulmanos precisam reformar linguagem para alcançar mais a periferia', diz rapper convertido

Na favela Cultura Física, em Embu das Artes, o islã já chegou; sala aberta em uma rua estreia e íngreme reúne jovens nas cinco orações diárias

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Por Redação
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Há cerca de seis anos, o movimento negro em São Paulo começou a redescobrir suas raízes muçulmanas e a resgatar histórias como a revolta dos malês, rebelião que aconteceu em 1835, em Salvador, na Bahia. Nas posses - grupos de hip hop que se encontram na rua -, começaram a ser discutidos o livro e o filme sobre a biografia de Malcolm X, líder do movimento negro e um dos grandes expoentes da religião nos Estados Unidos durante a década de 60. Nascia um grupo de muçulmanos com uma nova identidade.

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“Nós somos o foco de resistência na religião, estamos ainda na trincheira”, afirma o rapper muçulmano Leandro Di Função, que lembra de tempos não distantes em que o penteado black power era repreendido em mesquitas tradicionais. Para ele, os muçulmanos precisam reformar sua linguagem para alcançar mais jovens da periferia.

Na favela Cultura Física, em Embu das Artes, isso já está acontecendo. Há cerca de dois anos, em uma rua estreita e íngreme que sobe o morro do Jardim Santa Rosa, uma sala de oração dedicada ao islã foi inaugurada por Cesar Matheus, que adotou o nome de Kaab Al Qadir. A mussala serve para que muçulmanos da região, afastada das mesquitas da cidade, possam fazer suas cinco orações diárias. 

Em uma tarde de sábado, enquanto a poucos quarteirões o som do hip hop preenchia as ruas da comunidade e um grupo de jovens tingia muros com grafite, os organizadores do evento cultural saíam discretamente em direção à mussala para a oração do pôr do sol. Eram os integrantes da banda Organização Jihad Racional, grupo de rap que até pouco tempo estava desativado. Antes do show que marcaria seu retorno, os músicos rezaram na mussala ouvindo as preces em árabe que eram recitadas pelo filho de Kaab, de 12 anos.

Formado por três brasileiros convertidos ao islã, após anos de recesso o grupo reviu seus conceitos musicais para se adequar aos preceitos muçulmanos e voltar à atividade com um novo formato. Batidas eletrônicas foram dispensadas, o som agora é feito apenas com as vozes, e o conteúdo das letras é político - sem citar o islã, como grupo já fez em trabalhos anteriores. Música e religião não se misturam, dizem os integrantes.

“Eu não posso esquecer que sou muçulmano quando canto rap”, diz Lucas Rua, de 29 anos, que hoje se apresenta como Mohammad Abdul Malik e é o integrante mais novo da Organização Jihad Racional. 

Meses antes de se converter ao Islã, um sonho estranho fez com que Malik refletisse sobre religião. No sonho, ele estava perdido em uma praia quando foi abordado por um homem de túnica branca, típica das peregrinações a Meca, que lhe disse: "Allahu Akbar" ("Deus é maior", em árabe). Ele não conhecia o idioma.

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Pouco depois, ele descobriu a tradução da frase ao assistir um filme e começou a estudar o Alcorão. Aos poucos, conheceu os preceitos do islã, aprendeu suratas e decidiu se converter. Hoje ele tem uma explicação social para a conversão de jovens de periferia que, como ele, se interessam pela religião.

Exclusão social. A própria biografia do profeta Mohammad é marcada pela exclusão social, de acordo com o Alcorão e registros históricos. Ele era órfão e analfabeto, e entre os primeiros convertidos estavam escravos e pobres. “Eu acho que quando a pessoa da periferia lê (o Alcorão) e se identifica, ela fala: 'Espera aí, ele está falando de mim’", diz Malik.

Khaled Zogbi, de 40 anos, é um comerciante ambulante de origem libanesa que havia se afastado da religião porque morava muito longe de qualquer mesquita. Ele também foi acolhido na mussala, com sua filha e a mulher, que está grávida e se converteu ao islã há quatro meses. “A mesquita mais perto da minha outra casa é a de Santo Amaro, e preciso pegar duas conduções pra chegar até lá”, explica Zogbi. “Como somos em três na família, outro dia gastei quase R$50 na viagem.”

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