Na segunda parte, Norambuena fala de sua formação no Chile

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Por Agencia Estado
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Maurício Hernández Norambuena, na segunda parte de sua entrevista, conta os detalhes de sua formação política, revela que fez treimanento militar em Cuba, explica os motivos que levaram à ruptura entre a Frente Patriótica e o Partido Comunista Chileno, além de relatar detalhes sobre o plano para matar o general Augusto Pinochet. Faz autocrítica ao reconhecer que a frente errou ao seguir na luta armada após a redemocratização chilena e explica as razões que levaram seu grupo a matar e a seqüestrar políticos, militares e jornalistas, além de apontar seu guarda-costas, que foi assassinado pela frente, como um traidor e de insunar que o governo chileno fez acordos com alguns líderes da frente para deixá-los impunes em troca do abandono da luta armada. Estado - Quando o senhor começou a atuar na esquerda chilena? Norambuena - Comecei a militar na Juventude Comunista em 1971, em pleno governo de Salvador Allende (presidente socialista chileno deposto em 1973 pelo general Augusto Pinochet). Venho de uma família de esquerda: meus pais eram socialistas e meus irmãos, comunistas. No período que comecei a militar era muito difícil que um jovem ficasse indiferente ao processo político da época, já que a vida do país estava totalmente politizada, produto do governo da União Popular (aliança política que dava sustentação a Allende), o qual propiciava múltiplos espaços de participação cidadã para enfrentar os problemas do país. Estado - Por quais organizações o senhor passou? Norambuena - Militei na Juventude Comunista até 1983, quando ingressei nas fileiras da FPMR. Estado - O senhor é apontado como o chefe militar da frente. O senhor foi treinado na antiga Alemanha Oriental? Norambuena - Falar em chefe militar é coisa do passado, de quando a frente era um aparato armado, clandestino, hierarquizado verticalmente, na qual sua dinâmica fundamental era de caráter operativo e se expressava principalmente por formas armadas. Nesse tempo havia chefes em vários níveis e, durante um tempo, comandantes. Faz dez anos que a FPMR se está transformando, tanto política como estruturalmente. Já não há chefes nem órdens. Em relação à Alemanha Oriental, nunca estive naquele país. Estado - O senhor fez treinamento militar em Cuba? Norambuena - Na década de 80, como rodriguista, tive a oportunidade, assim como tantos jovens chilenos de diferentes organizações da esquerda, de receber preparação em Cuba como parte do esforço solidário daquela revolução para com o povo chileno que lutava contra a ditadura de Pinochet. Estado - Por que fracassou o plano de José Valenzuela Levi de matar o general Pinochet em 1986? Quais foram as falhas do ponto de vista militar? O senhor participou dessa operação? Norambuena - Antes de mais nada, o planejamento da emboscada para justiçar o tirano, chamada pela FPMR de "Operação Século XX", foi realizado por um coletivo da direção da frente. José Joaquim Valenzuela Levi, o Comandante Ernesto, participou do plano e foi o chefe do trabalho de campo da operação. Sobre o fracassso, por não haver cumprido o objetivo principal, ele tem suas causas em aspectos operativos e técnicos, isto é, em detalhes do plano e do armamento empregados. De minha parte, tive a proveitosa oportunidade de ser convocado para participar dessa operação. Estado - Como foram as discussões na frente até ruptura com o PC em 1987. Por que vocês decidiram seguir no caminho das armas? Norambuena - Foram diferenças políticas que levaram a ruptura da FPMR com o PC. Poder-se-ia resumir que o fim da ditadura, para a frente, passava por sua derrota político-militar e, para o PC, por derrotá-la politicamente, seguindo o itinerário traçado por Pinochet. Essas diferenças tinham sua base em leituras distintas daquele contexto feitas pelo PC e pela FPMR. Essa postura da frentre explica por que persistimos no caminho da confrontação armada contra a ditadura. Estado - Como vocês viam altos chefes do PC como Luis Corvolan (então secretário-geral) e Volodia Teltelboin? Norambuena - Em respeito aos dirigentes do PC em geral, nossa apreciação nos tempos da ruptura foi de muita decepção, pela renúncia que faziam de uma política que eles mesmos haviam impulsionado, que para a frente seguia válida em suas formas e moralmente. Estado - O que o senhor sabe do seqüestro do coronel do exército chileno Carlos Carreño, em 1987, que foi libertado em São Paulo? O senhor participou dessa operação? Norambuena - Essa operação, chamada "Príncipe" por nós, foi a primeira ação de envergadura realizada pela frente em sua vida independente, após a ruptura com o PC em setembro de 1987. Foi um momento político complexo e sensível porque estavam definindo-se que tipo de saída se teria em relação à ditadura. Os setores políticos do centro, da direita e a igreja católica, com o patrocínio dos Estados Unidos, estavam acertando um acordo com os militares para uma transição pacífica, dentro dos limites da Constituição de Pincohet, promulgada em 1980. Ela contemplava um plebiscito em 1988, no qual se decidiria se Pinochet continuaria como presidente ou se haveriam eleições em 1989. Do outro lado, estavam os setores mais radicalizados que propunham a derrubada da ditadura - neste último encontravam-se as organizações armadas. Por isso aquela operação teve como objetivo trazer ao conhecimento do país a posição da frente - uma das exigências (para libertar Carreño) foi a publicação na imprensa de várias declarações da FPMR. Além disso, exigiu-se a entrega pelo Estado de mercadorias e alimentos em várias favelas de Santiago. Com a libertação do coronel em São Paulo, são e salvo, produziu-se uma imensa simpatia nos setores populares. Foi sem dúvida um golpe na moral da ditadura, pois significou burlar os serviços de segurança e o controle ferrenho que exerciam sobre o país. Participei de várias fases da operação sob o comando do companheiro "Rigoberto", um dos principais chefes operativos da FMPR. Estado - Por que continuar a luta armada depois de Pinochet ter deixado o governo? Norambuena - São vários os elementos que explicam por que continuamos pelo mesmo caminho. O fundamental, porém, foi não termos sido capazes de interpretar, em toda sua magnitude e alcance, o novo contexto político que se abria. Em nossa reflexão posterior há uma frase que sintetiza bem essa idéia: "a realidade ia para um lado e nós íamos para outro". Nos anos 92/93 ficou-nos evidente que não poderíamos continuar na mesma dinâmica operativa, já que a frente se havia reduzido a expressão mínima. Esse é um dos principais fatores que detonaram o processo de reflexão em nossas fileiras e nos levaram à virada de nossa política, partindo do reconhecimento da derrota de nossa estratégia (a Guerra Patriótica e Nacional). Define-se então o trabalho social de base e o inserimento na realidade política e social como forma de nossa participação no processo de rearticulação global dos setores mais golpeados pelo domínio neoliberal, que resistem e reclamam seu direito de pensar e de construir um mundo distinto. Ou nos dizeres do subcomandante Marcos dos zapatistas: "Um mundo onde coexistam muitos mundos". Estado - Por que vocês mataram o senador Jaime Guzmán? Norambuena - No ano de 1990, com o advento do governo civil, a frente tinha a convicção que não seriam julgados nem punidos os responsáveis intelectuais e materiais das violações dos direitos humanos nos 17 anos de ditadura militar, devido ao fato de que os setores políticos comprometidos com a transição negociada com os militares consideravam que a justiça seria feita "na medida do possível". Em outras palavras, admitiam que haveria justiça na medida em que Pinochet a permitisse. Por isso, era evidente que não haveria justiça para milhares de desaparecidos, assassinados, torturados, exilados, etc. Isso nos levou a definir uma série de objetivos para serem justiçados (assassinados), fossem autores e ou cúmplices desses crimes. Guzmán era um anticomunista furibundo, líder máximo da extrema direita chilena e instigador do golpe militar em 1973 que derrubou Salvador Allende e acabou com a democracia. Depois, atuou como um dos principais ideólogos da ditadura. Esses são alguns dos motivos que nos levaram a fazer seu justiçamento. Estado - Por que se fez o seqüestro de Cristian Edwards, herdeiro do grupo El Mercúrio? O dinheiro serviria para financiar um recuo da frente? Norambuena - O seqüestro de Edwards em 1991 teve para a frente uma finalidade financeira, sendo que, além disso, golpeávamos uma das mais poderosas famílias da direita chilena e de reconhecidos vínculos com os americanos - fundamentalmente com a CIA. Porém, o fundamental foi obter os recursos que necessitávamos (o resgate de US$ 1 milhão foi pago e Cristian, solto). Estado - Especula-se que a frente fez um acordo com o governo chileno pelo qual os líderes da organização ficaram livres desde que fossem para o exílio e encerrassem suas atividades no país. É verdade? Norambuena - A FPMR não realizou nenhum acordo desse tipo com o governo chileno. Outra coisa seria o fato que, de maneira individual, algum dirigente da frente tivesse negociado para seu benefício pessoal e pode-se presumir isso pois alguns ex-dirigentes da FPMR vivem atualmente no Chile totalmente legalizados e com o conhecimento das "autoridades". Estado - Agdalín Valenzuela foi um traidor (ex-guarda-costas de Norambuena, ele foi preso com o chefe em 1993 e solto pela políciai em seguida, aparecendo morto meses depois. Para a polícia, ele foi executado pelos colegas da frente que desconfiavam de sua traição)? Norambuena - Temos indícios de que Agadalín Valenzuela colaborou com os serviços de segurança do governo chileno desde 1992, entregando informaçôes à Direção de Segurança, conhecida também como Oficina (órgão dirigido por socialistas que também tiveram treinamento em Cuba). Em todo o tempo de seu trabalho de "soplonaje" (cagüetagem), militou ativamente na frente. As informações que ele obteve na FPMR e que entregou à Oficina significaram a queda de alguns militantes rodriguistas e também a perda de recursos. Isto é, esse sujeito foi um aliado da Oficina, cujo objetivo era, entre outros, o aniquilamento da FPMR. Não temos nenhuma dúvida a esse respeito. Estado - A polícia chilena diz ter interceptado conversas telefônicas do senhor a partir de Cuba para seus parentes no Chile após sua fuga em 1996. O senhor esteve em Cuba? Como explica ter um visto cubano em um de seus passaportes apreendidos pela polícia? Norambuena - A respeito do episódio de nossa estada ou não em Cuba após o resgate do cárcere não vou me pronunciar por duas razões. Primeiro, porque deveria ser suficiente o pronunciamento do governo cubano (Cuba nega ter abrigado os frentistas). A segunda é porque não vou alimentar uma polêmica instigada pelos que pretendem criar problemas ou prejudicar aquele país. Sobre o visto que há em um dos passaportes, ele tem um carimbo de 1994. Cabe recordar que estive preso de agosto de 1993 até dezembro de 1996. Estado - A frente está preparando novas ações no Chile? Norambuena - Como já disse, a realidade do rodriguismo hoje em dia é outra. O que fazer não passa pela realização ou não de ações armadas. Sua práxis é produto da dinâmica política e social da qual participa. Estado - O que o senhor pretende fazer agora? O que pretende fazer quando sair da prisão? Norambuena - Agora, continuarei na cela lendo "Peleando a la contra", de Charles Bukowski. Quanto aos planos futuros, desejaria ir ver o mar.

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