'Não é justo', diz único preso por protestos

Condenado por supostamente carregar coquetel molotov em uma manifestação, camelô do Rio alega que apenas voltava para sua casa

PUBLICIDADE

Por Pablo Pereira - O Estado de S. Paulo
Atualização:

As manifestações de rua que sacudiram o País em junho não se limitaram a provocar o recuo no preço das passagens de ônibus e a acender o alerta amarelo da classe política nacional. Na vida de pelo menos um brasileiro, Rafael Braga Vieira, de 25 anos, a onda de protestos provocou uma alteração radical - para pior. Cinco meses depois das noites de passeatas, ele, que trabalhava como camelô no centro do Rio e morava num casarão abandonado perto do local de protestos, é o único condenado pela Justiça por participação em manifestações.Na semana passada, Vieira foi transferido da cadeia pública de Japeri para o presídio de Bangu 5, no subúrbio da capital fluminense, onde deve cumprir 5 anos e 10 dias de prisão, em regime fechado, pela posse de duas garrafas de líquidos que, segundo a sentença, são considerados "aparato incendiário ou explosivo".Vieira nega a posse dos objetos, descritos na sentença como coquetel molotov. "Não é justo", diz. Ele alega que não participava das manifestações. Na última quinta-feira, aceitou receber o Estado no Presídio Elizabeth Sá Rego, onde aguarda que advogados de direitos humanos recorram da sentença do juiz Guilherme Schilling Duarte, proferida no dia 2."Não estava quebrando nada. Não estava tocando fogo em nada", diz Vieira na sala da escola da unidade do complexo prisional fluminense, que abriga mais de 20 mil detentos. No pavilhão no qual ele foi alojado havia, na quinta-feira, 908 presos.Planejando aprender o ofício de garçom no programa de reinserção social de internos oferecido no Bangu 5, ele não se conforma com a sentença. "Estava chegando para dormir no casarão", conta.O rapaz alega que na noite do dia 21 de junho havia chegado do trabalho para dormir na região da Lapa quando encontrou garrafas com detergente, fechadas, na entrada do prédio. A polícia reprimia uma manifestação que reunia, segundo o texto do processo, 300 mil pessoas "em prol das melhorias dos serviços públicos".Vieira se emociona ao lembrar que foi chamado por policiais por estar com as garrafas nas mãos - naqueles dias havia manifestantes que levavam garrafas de vinagre para combater os efeitos do gás lacrimogêneo da PM e outros usavam os recipientes como bombas incendiárias.O jovem diz que atravessou a rua para atender ao chamado dos policiais. A partir daí, segundo ele, foi preso, espancado, e levado para a delegacia. Não saiu mais da cadeia. Cinco meses depois, foi julgado como réu e preso. E pegou pena máxima para o artigo 16 (Lei 10.826/03).Risco. Na sentença, o juiz Guilherme Schilling Duarte descreve o relato de policiais testemunhas da prisão. "O réu ora presente entrou naquela loja (o casarão) com uma mochila e em seguida saiu com dois frascos em suas mãos", diz o texto. E prossegue afirmando que "as garrafas encontradas com o réu tinham estopim no gargalo" e que "o incendiamento daqueles artefatos seria capaz de colocar em risco as demais pessoas".O juiz prossegue: "Atente-se que o réu declarou uma versão pueril e inverossímil, no sentido de que teria encontrado as duas garrafas lacradas - uma (sic) segundo ele contendo ‘Pinho Sol’ e outra água sanitária". E fixa a sentença: pena de 4 anos e 10 dias. Em seguida, por considerar o rapaz "reincidente" - ele já havia sido preso por roubo, em 2006, o juiz acrescenta mais um ano de cadeia.De acordo com o diretor do presídio de Bangu 5, Émerson Luís Neves Paiva, Vieira já era um conhecido. O rapaz cumpriu 1 ano e 8 meses de prisão por roubo."Ele é um sujeito tranquilo, não devia mais nada", conta o diretor. "A falha dele", segundo Paiva, foi não comparecer em juízo para assinar presença exigida quando o preso tem o benefício da liberdade condicional. "Mas ele não era um foragido."Outras garrafas. No presídio, Vieira sustenta a versão segundo a qual as garrafas que carregava na hora da prisão não eram aquelas apresentadas pelos policiais. Sem receber visitas na cadeia, ele nem sabe se a família já foi avisada da condenação. Filho de família de baixa renda da Penha, na periferia do Rio, o jovem abandonou a escola na 5.ª série.Sem profissão definida, vivendo como catador de latas e vendendo objetos usados, Vieira conta com uma redução da pena para recomeçar a trajetória interrompida numa noite de manifestações.ONG pede nova perícia e pretende apelar da sentençaO advogado Felipe Coelho, da ONG Instituto de Defensores de Direitos Humanos (IDDH) do Rio, disse na sexta-feira que o primeiro recurso em defesa de Rafael Braga Vieira foi uma ação de embargo para preservar as provas do processo, que a sentença ordena que sejam destruídas. "Queremos fazer uma nova perícia. Depois, vamos entrar com a apelação da sentença", afirma o advogado. Para Coelho, Vieira está preso "porque é negro e pobre".O advogado diz que o IDDH já encaminhou documento denunciando o caso a organismos internacionais de direitos humanos na ONU. Para Coelho, Vieira não tem engajamento político e não participou de movimento nenhum reivindicatório. "Ele é vítima de uma visão deturpada sobre moradores de rua no Rio. Se fosse branco, com condição social melhor, pensariam duas vezes antes de prender e condenar", diz o advogado."Rafael estava no lugar e na hora errados", diz a advogada Raphaela Lopes, também do IDDH. Os defensores tentarão argumentar, para revisão de decisão, que Vieira é um "preso político".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.