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Nos cartórios, os pais 'de coração' conquistam reconhecimento no papel

Desde 2017, já foram feitos quase 45 mil registros de paternidade socioafetiva no Brasil; documento oficializa os laços de amor construídos às vezes ao longo de anos

Por Julia Marques
Atualização:

Eles são pais em tudo: nas noites mal dormidas, nos puxões de orelha, na vibração a cada conquista. E, embora não sejam os genitores, conquistaram o reconhecimento do vínculo de pai também no papel. A paternidade socioafetiva, como é chamada no meio jurídico, tem nomes mais singelos no interior dos lares brasileiros.

A advogada Ana Luíza Rodrigues, de 25 anos,resolveu presentear Roberto Cravo, de 43, com a oficialização do vínculo entre pai e filha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

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“É emoção”, resume o advogado Oton Nasser, de 55 anos, pai de Nicole, de 17, e Gustavo, de 12. Foi a jovem quem primeiro teve a iniciativa de oficializar o vínculo de filha com Nasser. No ano passado, ela levou o advogado ao cartório, de surpresa. A assinatura dos papéis que acrescentavam o nome do advogado na certidão de nascimento foi feita em meio às lágrimas.

O pai biológico de Nicole e Gustavo morreu 11 anos atrás. A perda, em um acidente de trânsito, marcou a família, e Nicole, no início, tinha dificuldade de aceitar um novo relacionamento da mãe. “Um dia, em uma viagem, ela falou: ‘tio Oton, por que você não namora a mamãe?’” Foi um sinal de que o coração começava a se abrir.

Com o mais jovem, Gustavo, o vínculo começou cedo. Desde bem pequeno, ele identificava em Nasser a figura paterna e colocava nas provas da escola o nome do padrasto. Não entendia, porém, por que o sobrenome de Nasser não aparecia em seus registros. Este ano, a surpresa foi inversa: o advogado levou Gustavo ao cartório sem que ele soubesse. Com o papel nas mãos, o menino celebrou: “É oficial”.

“A paternidade socioafetiva não é só no papel: ela sai do verdadeiro estado emocional e desemboca no papel. É da convivência para a certidão”, diz o advogado, que também tem outros filhos, biológicos. Nas certidões de nascimento de Nicole e Gustavo, agora, constam os nomes da mãe e dos dois pais. “Eles tiveram um pai biológico, que cuidou deles, que olha por eles, mas também tem um presente.”

A paternidade socioafetiva não é só no papel: ela sai do verdadeiro estado emocional e desemboca no papel

Oton Nasser, advogado

No Brasil, já são 44.942 registros de paternidade socioafetiva desde 2017, quando se tornou possível o reconhecimento diretamente nos cartórios, segundo dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg). Hoje, para fazer o registro em cartório, é preciso que a criança tenha mais de 12 anos e que tanto o filho quanto o pai socioafetivo concordem com o reconhecimento.

Em casos de menores de 18 anos, também é pedido aval dos pais biológicos. Se não houver concordância do pai biológico ou se a criança for menor de 12 anos, o procedimento tem de ser feito pela via judicial. O registro da paternidade socioafetiva é irrevogável e, na certidão, não há distinção entre o pai biológico e o pai do coração.

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Para fazer o reconhecimento, o cartório pode analisar documentos como registros da escola e até fotos em celebrações importantes. A modalidade cumpre uma função simbólica, de oficializar um laço de afeto que já existe, mas também pode ter papel prático, como garantir o direito à guarda e à herança – os mesmos de uma relação de paternidade biológica.

Dia a dia

Este ano, o Dia dos Pais na família da advogada Ana Luíza Rodrigues, de 25 anos, será comemorado com um tempero a mais: a jovem resolveu presentear Roberto Cravo, de 43, com a oficialização do vínculo entre pai e filha. O pai biológico de Ana Luíza se afastou após o divórcio e, quando a menina tinha 8 anos, conheceu Cravo, que passou a fazer parte da família.

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O laço foi construído dia a dia. Em grandes e pequenos momentos, ele se fazia presente: viagens, formaturas, celebrações na escola. E até “nas apresentações minúsculas que eu fazia só para minha mãe em casa, ele estava lá aplaudindo, apoiando”, lembra Ana Luíza. A paciência foi a chave para a conquista. “Ele esperou meu tempo.”

Quando a jovem tinha 15 anos, o irmão nasceu e veio a dúvida sobre como ficaria o relacionamento com o padrasto, que agora tinha um filho biológico. “Pensei que teria alguma diferença no tratamento entre nós dois”, contou. Mas aconteceu o contrário. “Percebi ali, vendo que ele estava fazendo o papel dele sem deixar de fazer para mim, que era um cara com quem eu poderia contar. Comecei a reconhecer nele essa figura paterna.”

Laço entre pai e filha foi construído dia a dia. Em grandes e pequenos momentos, ele se fazia presente: viagens, formaturas, celebrações na escola Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Cravo conta que o relacionamento exigiu algumas doses de empatia – no início, era preciso se colocar no lugar de uma menina ainda sem maturidade para entender a nova configuração familiar – e outras tantas doses de renúncia. “Queria curtir coisas de casal, mas priorizava os três saírem juntos. Ela nunca se sentiu preterida”, diz o pai, supervisor de manutenção de uma plataforma de petróleo.

Na vida adulta, o apoio continua, de outras formas: ele busca oferecer oportunidades para que a jovem se desenvolva e tenta transmitir sua experiência para evitar que os filhos passem pelas dificuldades que passou. “Ele se esforça para abrir caminhos”, conta Ana Luíza.

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Devolução

Em uma via de mão dupla, também recebe muito em troca. “Aprendi a ouvir mais, a ser mais humilde”, diz ele. Ter o amor registrado em papel, afirma o pai, confirma que tudo valeu a pena. “É um reconhecimento da parte dela, de que atendi às expectativas”, comemora. “A consolidação dessa história toda, a cereja do bolo.”

O que é paternidade socioafetiva?

É o reconhecimento voluntário da paternidade quando não há laços de sangue. Normalmente, é solicitada por padrastos, mas também pode ser requerida por outras pessoas, como tios e padrinhos. No Brasil, já são 44.942 registros de paternidade socioafetiva desde 2017, quando se tornou possível o reconhecimento nos cartórios.

Como é feita?

Há duas vias: judicial ou extrajudicial, diretamente nos cartórios. Nos cartórios, o reconhecimento só é feito no caso de crianças com mais de 12 anos. Tanto o pai socioafetivo quanto o adolescente têm de concordar com o registro. Se o filho for menor de 18 anos, é exigido aval dos pais biológicos.

Quais documentos é preciso apresentar?

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O registrador civil vai atestar a existência do vínculo afetivo por meio da verificação de situações concretas, como a inscrição do pretenso filho em plano de saúde, registro de que moram na mesma casa, vínculo de casamento ou união estável com a mãe. Também podem ser levadas fotografias em celebrações relevantes e a declaração de testemunhas.

Como fica a certidão após o reconhecimento da paternidade socioafetiva?

A certidão de nascimento da criança/jovem é alterada para incluir o nome do novo pai e dos novos avós. O nome do pai biológico não é retirado da certidão. O nome da criança/jovem também pode ser alterado para acrescentar o sobrenome do pai socioafetivo.

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