O americano tranqüilo

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O leitor deve se lembrar do Boris, aquele americano com rabo que foi impedido de entrar no Metrô de São Paulo. Boris nasceu no Michigan e estava no Brasil a trabalho, diga-se, social e voluntário. É verdade que além de rabo possuía também um focinho, andava de quatro, mijava no poste e babava. Por causa dessas suas peculiaridades, foi tratado como um cachorro. Acontece porém que Boris, cuja ascendência realmente incluía labradores e golden retrievers, era antes de tudo a ferramenta de locomoção da advogada Thays Martinez, deficiente visual. Não se tratava portanto de um reles cachorro, mas de um cão-guia, esse sujeito que anda até de avião na cabine de passageiros em qualquer parte do mundo. No Brasil, que é um país sério, foi preciso uma decisão judicial para que Boris conseguisse, em 2005, o constitucional direito de ir e vir. Aos 70 anos, sua idade de cachorro vezes sete (portanto sua idade humana), Boris acaba de se aposentar. Capaz de guardar na memória até 200 endereços, conduziu Thays por 8 anos e meio. Nunca errou um caminho. Foi tão dedicado à profissão que não teve filhos nem sequer uma noite de sexo. Preparado nos Estados Unidos pela ONG Leader Dogs for the Blind, sua pessoa jurídica foi fruto de uma seleção genética e um treinamento rigoroso. Por fim, arrancaram-lhe as partes, evitando que conduzisse seu dono para um desavisado ménage à trois. Ultimamente Boris vinha demonstrando cansaço. Um dia, em meados deste ano, aproveitou o sinal fechado na Avenida Paulista para deitar-se na calçada. Um cão-guia não faz uma coisa dessas de jeito nenhum, e Thays decidiu então que era hora de substituir Boris. Em 16 de novembro, ele cumpriu seu último trajeto como cão-guia, conduzindo-a até o check-in do aeroporto. Ela ficou "acabada" ao falar tchau. Boris apenas lambeu o seu nariz. Um cão-guia não é vendido. Sua disponibilidade obedece mais ou menos aos princípios que regulamentam o transplante de órgãos. Quem obteve o seu cão por meio da Leader Dogs tem direito a um outro quando este se aposenta. Além de Thays, mais três brasileiros fizeram parte do grupo recebido em novembro pela ONG americana, onde passaram mais de um mês se adaptando aos novos condutores. Thays levou dois dias para conhecer Diesel, um labrador preto de 28 quilos, nascido em maio de 2008. Ela sabia exatamente como era o Boris: o focinho um pouco mais alongado, as patas esguias. Diesel é parrudo e "quadradinho". Thays abriga agora os dois cães. Boris tem convivido relativamente bem com Diesel, embora a dissimulação, o ciúme e a inveja lhe sejam peculiares tanto quanto seu excelente caráter. Diesel atravessa uma crise de identidade: Thays não sabe se o mantém como Diesel, ou se troca o seu nome para Dodi - nada a ver com o safadodi da novela. Em www.iris.org.br, o leitor pode escolher o nome deste americano recém-chegado e com rabo.

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