O culto fálico a São Gonçalo

PUBLICIDADE

Por José de Souza Martins
Atualização:

De Portugal nos veio a devoção das mais emblemáticas tanto da difusão do catolicismo entre nós quanto da religiosidade caipira, a de São Gonçalo de Amarante. Aqui, o santo tornou-se patrono dos violeiros caipiras. Quem quer aprender a tocar a difícil violinha de cinco cordas duplas tem de se agarrar com ele. Ou, alternativamente, como sugeria o violeiro Renato Andrade, tem de fazer um pacto com Satanás, à meia-noite de uma Sexta-feira Santa, em cemitério, sobre túmulo de um violeiro. O dom da viola em troca da alma. Porém, mais segura é a opção pela viola de São Gonçalo, instrumento de devoção, desde muito cedo associada ao catolicismo popular, ao catolicismo doméstico e de terreiro. Nesse sentido é curiosa a evolução diversa da devoção ao santo de Amarante, em Portugal e no Brasil. Aqui, é ele representado com a viola nos braços e é cultuado na dança de São Gonçalo, uma dança que se pratica nas casas e terreiros para pagar promessas, seja das solteironas para arrumarem marido, seja dos velhos em geral para a cura do reumatismo. No estudo que fez sobre a devoção a São Gonçalo no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz constatou que ainda no século 18 a dança era praticada dentro das próprias igrejas. O progressivo banimento das práticas do catolicismo popular de dentro dos templos, expulsou-a para os terreiros da roça. São Gonçalo criou fama como violeiro que, com sua dança, atraía e convertia as prostitutas. Também casava as velhas. Tornou-se particularmente eficaz na cura da esterilidade das mulheres que não conseguem ter filhos. Em Portugal, ainda hoje, é esse o "lado forte" da devoção ao santo. É comum que se veja na capela em que está sepultado, na sua igreja em Amarante, beatas e devotas que rezam com a mão pousada sobre o lugar do membro em sua estátua jacente. São as que, cansadas da espera de uma gravidez, vão pedir ao santo a graça de um filho. No dia de sua festa, no próprio átrio da igreja, os peregrinos encontram à venda bolos e pães doces em formato de falo, de vários tamanhos, conforme o apetite de maternidade das carentes de procriação. Ainda nestes dias, vi na vitrina de uma padaria de Amarante dois falos expostos ao lado da imagem de São Gonçalo, já fora da época de sua festa. A diferença do culto a São Gonçalo em Portugal e no Brasil deve-se, provavelmente, a que o Brasil foi colonizado na época da difusão do sisudo e depurado catolicismo da Contrarreforma. A devoção a São Gonçalo espalhou-se devidamente filtrada de suas características pagãs. Lá, a imagem de São Gonçalo apresenta-o sem a viola. Aqui, sua imagem é com a viola. Lá, São Gonçalo perdeu a viola, mas manteve o falo. Aqui, São Gonçalo manteve a viola, mas perdeu o falo. Nem sempre se pode ter o melhor de dois mundos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.