O delator

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Em meados dos anos 1980, quando fazia uma pesquisa sobre o subúrbio de São Paulo, estive às voltas com a falta de dados sobre um trabalhador de esquerda, o gráfico Manuel Medeiros, que morara no bairro de Monte Alegre, em São Caetano. Eu sabia que ele morrera na prisão, preso na onda de repressão de 1935-36, e tinha nas mãos o prontuário dele no Dops, cujos documentos foram abertos à consulta pública pelo governo Franco Montoro. Morrera no improvisado presídio político da fábrica Maria Zélia, no Belenzinho. Um amigo me sugeriu que fosse conversar com Fúlvio Abramo, que estivera preso no mesmo lugar e na mesma época e que, de fato, estava entre as pessoas citadas no prontuário do preso. Fui procurá-lo em sua casa, no Butantã. Lembrava-se, sim, de Medeiros, que era trotskista como ele e que morrera na prisão, asfixiado, soltando lombrigas pelo nariz e pela boca. Os presos gritaram durante largo tempo, chamando o carcereiro, e não foram atendidos. Abramo quis então saber como eu chegara até ele e ao caso do gráfico. Disse-lhe que os prontuários dos presos políticos já podiam ser lidos pelos interessados. O de Manuel Medeiros continha detalhados relatos de um alcaguete sobre reuniões dos trotskistas, com referências a vários participantes, como ele, Abramo, e Mário Pedrosa. Fui sumariando as reuniões denunciadas pelo espião e os lugares em que foram realizadas: uma gráfica clandestina em Pinheiros, uma chácara no Jabaquara, um encontro de vários com Mário Pedrosa em Campos do Jordão, que ali se encontrava em tratamento de saúde. Quando terminei o relato, Abramo estava devastado. Minha narrativa, sem que eu soubesse quem, tinha implícito o nome da pessoa de cuja delação resultara sua prisão. Havia uma só pessoa que sabia tudo aquilo, além dele. Olhando vagamente para o chão, comentou: - Você confia cegamente numa pessoa a vida inteira, a quem tem como amigo, quase como se fosse alguém da família. E é quem te denuncia à polícia. Eu estava escondido em sua casa, na Casa Verde, quando fui preso. Um dia, alegando que precisava dar um pulo até a cidade, deixou-me sozinho. Da janela eu o vi indo pelo caminho que atravessava o descampado. Parou para conversar com um grupo de homens que vinha na direção contrária e seguiu adiante. Era a polícia que vinha me prender. No arquivo pessoal de Getúlio Vargas, na coleção da correspondência enviada ao presidente da República, no Estado Novo, há cartas de pessoas que, espontaneamente, delatavam vizinhos e conhecidos como subversivos, denúncias repassadas à polícia política. Bajuladores que reorientavam sua lealdade política para a nova e poderosa figura simbólica do chefe da Nação. Forma perversa de civismo a dos filhos bastardos de Silvério dos Reis.

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