''O desespero foi a reação mais frequente''

Psiquiatra conta que os familiares das vítimas passam por diferentes fases, da retração total à cólera e à negação

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Por Andrei Netto
Atualização:

Para os franceses, a queda do Airbus é a maior tragédia da história de sua aviação civil, além de um capítulo negro na história da Air France, um dos símbolos nacionais. Na vida dos brasileiros, é um drama que se repete. Em Paris, um homem se encarregou de administrar o trauma das famílias de grande parte das 228 vítimas: Didier Cremniter, de 58 anos, psiquiatra e coordenador da Célula de Urgência organizada pelo governo francês. O objetivo do órgão foi responder com eficácia a toda sorte de demanda criada nas primeiras 96 horas da tragédia, desde o atendimento médico e psicológico, até prosaicas questões administrativas. Cremniter é a maior autoridade em "medicina da catástrofe" na França. Em 2000, coube a ele organizar o socorro às vítimas do desastre de Gonesse, envolvendo um Concorde - um dos cinco acidentes aéreos dos quais coordenou células similares. A Célula de Urgência tem uma função mais humana ou mais administrativa? É sobretudo um trabalho humano, de assistência médico-psicológica de pessoas envolvidas no trauma. Mas é também uma organização administrativa, que serve para auxiliar o trabalho do que chamamos de "medicina da catástrofe". Como foram os primeiros momentos após o desaparecimento do Air France 447? A primeira fase foi de acolhimento de quem esperava pelos familiares no aeroporto. Foi um momento difícil. Havia pessoas com sintomas muito diferentes, alguns dos quais com agudo sofrimento. Logo, precisamos estabelecer métodos de terapia de urgência, algumas vezes com medicamentos. A Air France mobilizou um número enorme de funcionários. Mas mesmo eles tiveram, em muitos casos, de ser atendidos, porque eram os encarregados de comunicar os parentes por telefone, uma tarefa altamente estressante. Quais foram as reações mais frequentes entre os familiares? Há pouco mais de dez anos, em um desastre da Swiss Air, a rejeição ao atendimento médico-psicológico foi enorme. Mas agora o apoio médico-psicológico foi diferente. Muitos queriam se expressar, deixar aflorar seus sentimentos. Houve um painel de diferentes reações: a retração total, a cólera, o desespero. Talvez o desespero total tenha sido a reação mais frequente. Mas não foi negligenciável o número de pessoas que reagiram "negando" os fatos durante as primeiras horas, os primeiros dias. Por que reunir todas as famílias em um único centro? Para preparar o luto? Foi absolutamente necessário reuni-las. A carga emocional em um momento como este é extremamente forte. Daí um local protegido. Em vários sentidos, este foi o local no qual teve início o luto. Mas, ao mesmo tempo, ele atendeu necessidades da investigação, como a coleta de dados para exames de DNA. Claro, a coleta se deu quando possível e, sobretudo, quando a ação era suportável. E como as famílias reagiram à colega de DNA? Não foi nada fácil, porque este é um ato que revela a desesperança. O senhor tinha esperanças? Nenhuma. Nenhuma. Quando ocorre o desaparecimento de um avião e não temos notícias ao longo de várias horas, não há mais esperança de se encontrar sobreviventes em 99,99% dos casos. Logo, eu não tinha esperanças. Mas, para as famílias, é preciso que cada um use o tempo que for necessário para assimilar essa informação. Qual foi a importância para as famílias da emoção coletiva causada por esse acidente na opinião pública internacional? Foi um aporte de solidariedade importante. Transmitiu uma mensagem de calor, um pouco de compartilhamento da dor. Como se dará a atenção às famílias nos próximos meses? Aumentaremos a atenção a essas famílias, trabalhando em conjunto com diferentes órgãos do Estado. Problemas jurídicos, por exemplo, serão encaminhados com os órgãos competentes. Nós, psiquiatras e psicólogos, vamos prestar a atenção necessária a quem nos solicitar. O senhor pretende manter o contato pessoal com as famílias? Já mantenho o contato. Trabalho para facilitar a interlocução dos colegas de diferentes regiões. Novas cerimônias devem ser organizadas, já que se mostram muito úteis para a recuperação das famílias. Falando em cerimônias, por que a de Notre-Dame foi marcada em tão curto espaço de tempo? Foi uma maneira de endereçar às famílias e à sociedade as condolências de todos. Em segundo lugar, foi uma mensagem de que não há mais esperanças. Para as famílias, foi um ritual de manifestação, um local onde a dor pôde ser expressada de alguma forma. Do ponto de vista médico-psicológico, foi útil à medida que deu um passo a mais no sentido do reconhecimento da tragédia, o que acelera o processo de sofrimento e de dor. No Brasil, vivemos três tragédias similares: Gol, TAM e agora Air France. Quais os efeitos disso? Se houve implicação da população local, o impacto é maior. No caso do acidente de São Paulo, a população que é próxima do aeroporto deve sofrer de um terror retrospectivo. Se há repetição da tragédia em curto espaço de tempo, é evidente que os traumatismos se sobrepõem. Pode haver, por exemplo, reativação de temores.

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