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O diário de um pai inconformado

A pedido do ?Estado?, Maurício Pereira, que perdeu a filha Mariana, escreveu sobre os dias que se seguiram à tragédia

Por Rodrigo Brancatelli
Atualização:

A mensagem na caixa postal do celular é exibida com orgulho - quase como se fosse um talismã, uma lembrança carinhosa e reconfortante. "Minha filha deixou esse recado dias antes do acidente, olha só a figuraça que ela era", diz o médico Maurício Pereira, mostrando a gravação de uma piada deixada pela estudante Mariana Simonete, de pouco mais de um minuto. "Se a gente não se apega a esses momentos bonitos, essas pequenas coisas, vai se apegar a quê? Prefiro pensar que ela foi cuidar do meu pai lá no céu. Prefiro pensar que ela está viajando, para um lugar bem bonito." Mariana, de 23 anos, caloura do curso de Medicina da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, foi uma das 199 vítimas do vôo 3054. Estava vindo para São Paulo encontrar a família, depois de quatro meses longe de casa. Fizera aniversário uma semana antes. O pai, de 50 anos, chefia um dos maiores hospitais de Cuiabá, para onde foi depois de se separar da mulher. Pereira conversava todo dia com Mariana, seja pelo telefone ou por mensagens na internet. Foi um dos familiares mais serenos no Hotel Blue Tree Towers, onde foram hospedados os parentes das vítimas; chegou até a montar um movimento para cobrar mais rapidez no Instituto Médico-Legal (IML). "Por enquanto, nós não queremos saber de culpados, de indenizações, de nada. Queremos apenas nossos familiares", disse no dia 20, sexta-feira. No domingo, no entanto, desabou. A dor chegou. "Caiu a ficha", disse ele, que chorou durante toda a missa em homenagem aos mortos na Catedral da Sé, segurando uma faixa onde se lia "um anjo se foi". A pedido do Estado, Pereira escreveu um diário sobre as últimas duas semanas - "as mais difíceis da minha vida". "Estou vivendo uma espécie de velório constante. Eu preciso enterrar a Mari, para continuar vivendo de alguma forma." 17 DE JULHO "Lembro de poucas coisas antes da ligação, estava no shopping quando a minha ex-mulher, Teresa, me telefonou. As palavras dela eu lembro muito bem. Ela falou: ?Não consigo chegar no aeroporto. Parece que caiu um avião... Não sei qual.? Eu corri para casa. Fui para o computador e vi o número do vôo. Eu tinha comprado a passagem, sabia que ela estava lá. A Mariana não iria embarcar nesse vôo. Eu havia comprado a passagem para a hora do almoço. Mas ela me ligou dois dias antes e disse: ?Pai, tenho prova e não vou conseguir pegar o avião. Dá para transferir para mais tarde?? Se eu tivesse comprado para qualquer outro vôo, ela não tinha morrido. Foi uma agonia até a confirmação. Vários amigos foram para a minha casa... Eu atordoado, assistindo ao vivo a cremação de minha filha. Ligava desesperadamente para o 0800 da TAM. Ocupado, ocupado, ocupado. Depois de muito tempo, atendeu. A conversa não durou nem 30 segundos, eu disse o nome inteiro da Mariana para saber se ela tinha embarcado e o atendente só se limitou a dizer: ?Ainda não sabemos. Ligaremos para o senhor?." 18 DE JULHO "Às 2 horas saiu a lista na internet, antes de a TAM me ligar. Eu ainda tinha esperança, mas a realidade é cruel. No vôo para São Paulo, as pessoas choravam muito, todos péssimos. A tripulação também chorava. O encontro com minha família na casa de minha mãe foi ainda mais desesperador, o choro e a tristeza contagiaram a todos. Por volta do meio-dia, fui para Congonhas, o cheiro da fumaça era horrível. Familiares de todos os cantos do País começavam a dividir sua dor. O pessoal do IML não conseguia se organizar. Depois de muito tempo, entreguei todos os documentos odontológicos de minha querida filha. A cada família que chegava em Congonhas a tristeza aumentava, o choro voltava. A dor é uma coisa indescritível. Fomos liberados para esperar em casa. Fiquei ouvindo o rádio a noite inteira, sem dormir." 19 DE JULHO "Logo cedinho, antes de o dia clarear, fui ao IML Central saber se poderia enterrar a minha filha. Mas ninguém deu notícias, o processo é moroso, poucos corpos são reconhecidos. Resolvi me hospedar no Blue Tree Towers junto com as outras famílias, para acompanhar mais de perto a evolução do processo de reconhecimento das vítimas. Quase não encontrei outros parentes. Todos ficam nos seus quartos, isolados. A TAM desapareceu. Quem nos atende é o Peace, uma ONG criada pela empresa para ajudar as famílias. É a marca da empresa para as catástrofes. Irritantemente nos afastam da imprensa, não deixam a gente dar entrevistas, não deixam repórter entrar no hotel, tudo para proteger a TAM." 20 DE JULHO "Dormi muito pouco, mais uma vez. Acordo sob a comoção de ter sido tripudiado por um ridículo assessor do ausente presidente da República. Me sinto completamente enojado, minha filha em um galpão frigorífico e um representante do palácio fazendo sinal de ?se ferrou? com as mãos. Resolvo repartir minha dor com alguns repórteres, acho que desabafar faz a gente esquecer um pouco da dor e lembrar das coisas boas. A Mari só merece ser lembrada com alegria, com risadas. O inerte presidente da TAM aparece depois de 72 horas da tragédia. Somos levados para uma sala de reuniões dentro do hotel. Ele falou como professor de pós-graduação de administração: ?Temos de ser proativos e blablablá.? Minha ira não tem fim e choro na sala lembrando da minha filha." 21 DE JULHO "Minha preocupação neste momento é o meu outro filho, Matheus. Ele está muito triste, deprimido, diz que a vida não tem mais sentido. Sinto que preciso ser forte, pelo bem das pessoas da família que continuam aqui na terra. Mando ele cortar o cabelo, encontrar com a mãe dele, ir ao shopping, qualquer coisa que ajude a arejar a cabeça. Ele está no terceiro ano do ensino médio. Até o começo do ano, falava que ia ser engenheiro. Ontem, ele assumiu que vai ser médico, que nem a irmã ia ser." 22 DE JULHO "Não lembro muito da missa realizada na Catedral da Sé, eu estava um caco. O incompetente presidente da TAM atropelou as famílias enlutadas com seus seguranças agressivos. Tanto esforço, tanto amor aos meus filhos e não respeitam minha dor. Organizamos uma passeata até Congonhas. Com a ajuda da polícia, paramos a Avenida Washington Luís e oramos todos juntos." 23 DE JULHO "Os dias são cada vez mais longos. O Matheus está inconsolável. Não consigo mais falar com os repórteres. Tudo virou um pesadelo." 24 DE JULHO "Não consigo nem mais acompanhar as notícias na televisão. O presidente da TAM foge da gente, como se fôssemos os assassinos de nossos filhos." 25 DE JULHO "Preciso descansar, são muitos dias sem dormir direito, obcecado com o enterro da Mari. Não tenho vontade de falar com ninguém. Estou irritado, o sangue da Mariana manchou a terra que ela tanto amava , a menina cheia de sonhos de ajudar tanta gente foi morta pela ganância de uma diretoria desumana que explora seus funcionários e trata a morte de seus clientes como uma coisa normal." 26 DE JULHO "Mari continua nos quartos do IML. Mas quero esquecer isso e apenas lembrar que sua alma está em paz. Amava minha filha tanto, não deixarei sua memória ser ultrajada pelos políticos. Vou voltar para Cuiabá, ocupar a cabeça, senão ficarei louco nessa espera sem fim para o enterro. Ela era uma pessoa incrível. Todo mundo gostava dela, ela era festeira, era engraçada, vivia fazendo piada. Nunca vou esquecer de quando sentávamos só eu e ela para ver as séries que gostávamos na televisão. Era um momento só meu e dela. Senhor Marco Bologna, aguardo pelo menos uma atitude digna agora. Quando olhar para sua filha, lembre que para mim só restam fotos e saudade."

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