O encontro da arte com a loucura, uma profecia

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Por Adriana Carranca
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Para Renato Di Renzo, entrar na Casa de Saúde Anchieta, o antigo manicômio de Santos, conhecido como "casa dos horrores", foi antes de tudo um resgate da infância, uma reconciliação com a própria memória. O menino se impressionava com os gritos vindos de trás dos muros altos no fim da Rua Princesa Isabel, onde cresceu. Curioso, rodeava o hospício de bicicleta enquanto imaginava cenas com os sons que vinham de lá. Os colegas zombavam: "você vai acabar ali". "E acabei", brinca. Renato foi convidado em 1989 pelo então secretário de Saúde de Santos David Capistrano, um articulador da reforma psiquiátrica no Brasil, para iniciar um trabalho de arte educação no Anchieta. "Era como se os colegas de infância tivessem feito uma profecia. Só que encontrei ali algo muito pior do que eu jamais havia imaginado. O horror era grande. De gente manchada, machucada, borrada." Ele pediu às internas que lhe mostrassem o hospício. "Cada descascado de tinta, cada sujeira, a marca de um arranhão na parede, tudo tinha uma história. Era a arquitetura funcionando como suporte de uma caligrafia da loucura, da tortura, da dor", lembra. Daí surgiu a ideia de um teatro de arena. "É como novela", explicou. Ele marcou o primeiro ensaio para o dia seguinte "às 8 horas, nessa parede". E se emocionou ao encontrar os internos emparedados lado a lado, esperando por ele na hora marcada. Cada canto do hospital foi renomeado e virou cenário. Encenou-se Romeu e Julieta. Do imaginário do grupo surgiu novo personagem: um cavalo falante, que passava o texto para Romeu, interpretado por um jovem com crises de amnésia. "Aquilo surgiu deles. Eu só provocava. E eles criavam. Na última cena, o cavalo receita remédios. Percebi que ia surgindo ali uma fala, uma crítica, a reprodução do sistema." A administração do hospital acompanhava, desconfiada. "Eles respeitavam o trabalho, mas não entendiam. Não tinham noção da força da arte para cutucar o ser humano. E não era arte para ?ajudar?, mas arte. Porque existe uma violência por trás da bondade, na forma da exclusão. Eu ajudo porque é correto, mas não me relaciono com o outro. Ele não percebe que o investimento nessa relação é nele próprio." Dois anos depois, o Anchieta foi desativado e Renato fundou a Associação Projeto Tam Tam que trabalha voluntariamente com portadores de deficiência e outros públicos.

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