O rei das pizzas e sua Castelões

João Donato mantém tradição de 85 anos

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Por Mônica Cardoso
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Uma vez por semana, o empresário João Donato, de 72 anos, passa a manhã inteira preparando fusilis, raviólis, talharins, linguines. Com cuidado, ele coloca a massa fininha no cilindro de alumínio. As treliças dão formas diferentes ao macarrão. Depois de pronta, a massa fica secando durante quatro horas em um tabuleiro de madeira coberto por uma tela transparente. Para ele, o preparo artesanal é o segredo da longevidade da Cantina e Pizzaria Castelões, no Brás, antigo reduto da colônia italiana, na zona central. O restaurante é o mais antigo de São Paulo funcionando no mesmo endereço em atividade ininterrupta. "Não mudou nada nesses 85 anos de história. São esses detalhes que influenciam no sabor final. O cliente que vier hoje e voltar daqui a dez anos vai comer o mesmo prato." O molho, também feito de forma artesanal, requer até dois dias de preparo. Só o cozimento dos tomates leva quatro horas. Para apurar são mais seis horas. A dica é acrescentar uma dúzia de bracholas para dar um toque especial. Todo o trabalhão rende apenas duas panelas de molho, mas nem passa por sua cabeça comprar latas de extrato. Para manter o sabor dos pratos, Donato compra os queijos, ovos e tomates dos mesmos fornecedores há mais de 50 anos. Se a opção for pelas pizzas, o cliente pode escolher entre 14 sabores - todos tradicionais. Por mês, são consumidas cerca de 2.500 pizzas. As redondas de quatro queijos e portuguesas acabaram de ser incluídas no cardápio. O pizzaiolo pode até preparar outro sabor se a cozinha dispor dos ingredientes. Só não peça pizzas com ingredientes mais "criativos", como bacon, peito de peru ou milho verde. E nada de bordas recheadas. Ele também torce o nariz para as redondas de chocolate, banana ou goiabada. "Não sou contra, mas pizza tem de ser salgada, sem muita invenção. É a mesma coisa que colocar mussarela no bolo." O ambiente da cantina permanece praticamente intacto ao longo de oito décadas, com balanças, um antigo carrilhão e placas espalhadas pelos salões com a frase "Cca''nisciun é fesso" , algo como "Aqui ninguém é bobo." O vinho gaúcho Slavieiro nem existe mais, embora esteja no letreiro da entrada - que é o mesmo desde a inauguração da casa. Donato acrescentou uns detalhes aqui e ali, como as garrafinhas de vinho penduradas no teto. As sérias toalhas de linho branco foram substituídas pelas quadriculadas, nas cores da bandeira italiana, para alegrar o ambiente. Dezenas de fotografias, de celebridades e anônimos, forram as paredes e ajudam a contar a história da cantina. Os craques Pelé, Vavá e Belini, da mítica seleção brasileira que faturou a Copa de 58, já provaram as pizzas da Castelões. Como também os cantores italianos de ópera Enrico Caruso e Tito Schipa, que devoravam pratos de macarrão após os espetáculos no extinto Teatro Colombo, no Largo da Concórdia. E era ali que os jogadores do Palmeiras comemoravam as vitórias nos jogos e campeonatos. Donato se lembra ainda da visita do lutador argentino de boxe Antonio Rocca, pelos idos dos anos 50. "Foi ele quem inventou o golpe da ?tesoura voadora? e nos deu ingressos para para assisti-lo no Estádio do Pacaembu. Fiquei tão pertinho do ringue que a água que jogavam nele caía na gente." Outra história que Donato conta com orgulho foi quando Fernando Henrique Cardoso foi à cantina comemorar a primeira vitória na eleição para presidente. "Ele era freguês de carteirinha. A rua ficou tão cheia que, pelo amor de Deus, não passava uma mosca." Ele e a mulher, Ruth Cardoso, costumavam pedir pizza de calabresa e vinho tinto italiano Chianti. O clima intocável atrai uma clientela fiel, que traz filhos, netos e bisnetos. "Na semana passada, um senhor comemorou seu aniversário de 84 anos. Ele me contou que vem há mais de 60 anos e o macarrão está a mesmíssima coisa!" Um grupo de amigos se encontra todo dia 19 de dezembro, a data em que se formaram em Engenharia na Faculdade Getúlio Vargas, na década de 1940. "O curioso é que eles não combinam. Anteriormente, eles lotavam meia cantina. Hoje, são meia dúzia." ACASO E pensar que a história da família Donato na Castelões começou por acaso, quando o pai, Vicente, foi trabalhar como garçom nos fins de semana. A experiência deu tão certo que ele largou o emprego de vendedor em uma sapataria na Praça da Sé. Com o tempo, Vicente se tornou gerente e depois entrou na sociedade com o proprietário do restaurante, Etore Siniscalchi. "Quando os filhos do Etore se mudaram para o Rio, há uns 50 anos, ele vendeu a sua parte para meu pai." Donato, que fazia bicos na casa desde os 16 anos, deixou o trabalho em uma loja de artigos cirúrgicos. Naquela época, ele ficava responsável pelas saladas, servidas como acompanhamento das pizzas. Conservar a cantina do mesmo jeitinho é uma forma de preservar essas lembranças. Hoje, ele divide o comando com o filho Fábio, de 32 anos, que também não pretende mudar nada. Por enquanto, Donato ainda é o primeiro a chegar pela manhã, às 8 horas em ponto, para cozinhar o almoço para os funcionários. Já na sua casa, no Tatuapé, bairro na zona leste em que sempre morou, a história é outra. É a mulher, com quem é casado há mais de 40 anos, quem comanda o fogão. "Eu nem passo pela cozinha. Lá a cozinha é dela."

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