O senhor do tempo

Paulo Marques dos Santos queria ser astrônomo, mas se apaixonou pela meteorologia e morou 20 anos na USP

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Por Edison Veiga
Atualização:

Parece um tique. Mas pode ser apenas resultado do bom humor de quem, aos 81 anos, esbanja felicidade. A cada 30 segundos de conversa, uma risada sai da boca do meteorologista Paulo Marques dos Santos. E cativa o interlocutor - no caso, este repórter -, que fica curioso para mergulhar na história do homem cuja vida se confunde com a do Instituto Astronômico e Geofísico da USP, o IAG. Paulo não queria ser meteorologista. Preferia ser astrônomo, estudar as estrelas. Idéia fixa desde que um professor da escola primária de Cachoeira Paulista, onde foi criado, a 212 quilômetros da capital, apresentou à classe os planetas do Sistema Solar. "As aulas foram tão bem dadas que passei a me interessar", lembra. A vocação para a meteorologia veio bem depois. "Na época, não existia curso nenhum de Astronomia no Brasil. E eram três as profissões admissíveis: advogado, médico e engenheiro." Entre elas, ficaria com a terceira. Em 1945, aos 17 anos, começou a pensar em como faria o serviço militar obrigatório. O mundo ainda estava em guerra. Fim de guerra, é verdade. Seu sonho era entrar na Aeronáutica. "E, quem sabe, ser convocado", conta. Providenciou toda a papelada, mas ouviu um severo e irredutível "não" dos pais, que nem sequer admitiam a possibilidade de que seu menino corresse riscos. Mas foi a 2ª Guerra Mundial que acabou selando seu destino, ainda que por vias indiretas. Isso porque, em 1942, com a entrada do Brasil no conflito, o governo firmou parceria com a Embry Riddle School, escola que formava pilotos e técnicos em manutenção de aeronaves para o governo americano. Aqui chamada de Escola Técnica de Aviação, a instituição funcionou até 1951 no prédio da Hospedaria dos Imigrantes - hoje Memorial do Imigrante -, na Mooca. O jovem Paulo se inscreveu num curso de eletrônica, uma das especialidades ensinadas na escola - havia opções de controlador de vôo, radioperador, meteorologista... Não abriu vaga para sua preferência. "Pensei em tentar controlador de vôo, mas tinha um colega doido para entrar nessa. Então, troquei para meteorologia." Foi aí que o menino nascido em Lorena mudou-se para São Paulo. Morava no alojamento da própria escola. "Severa disciplina militar", lembra, entre uma gargalhada e outra. "Tinha hora certa para tudo e eram poucos os horários em que podíamos sair." Um dia, uma instrutora perguntou à sala se alguém sabia do observatório meteorológico de São Paulo. Observatório? Em São Paulo? Aquilo atiçou a curiosidade de Paulo. Cismou que iria conhecê-lo. Aproveitou um dia de folga, tomou um ônibus da Mooca ao Jabaquara e fez uma longa caminhada até onde hoje é o Zoológico. "Só tinha chácaras e mato por aqui." Fardado, chegou ao tal observatório e perguntou pelo diretor, o engenheiro Alypio Leme de Oliveira (1886-1956). Não estava. "Então pedi o endereço e fui com a cara e a coragem bater na casa do doutor, na Rua Augusta." Onde aconteceu o seguinte diálogo: - O que deseja? - Gosto de astronomia e quero visitar o observatório. - O que o senhor faz? - Estudo meteorologia na Escola Técnica de Aviação. - Existe um curso desses? - Existe. Mas por que o senhor está interessado? - Porque o observatório tem estação meteorológica e precisamos de gente com formação. Quando terminar as aulas, venha aqui me procurar. Assim, quase por acaso, Paulo estava determinando sua carreira. Acabado o curso, foi servir na Base Aérea de Fortaleza, Ceará. "Aí, me impuseram uma condição: para continuar, precisaria assinar contrato de cinco anos." Pediu a conta e, em 1947, voltou a São Paulo. "Fui atrás do homem. Quando o encontrei, ele me disse que não precisava mais de um meteorologista. Precisava de quatro." Nova gargalhada. Indicou outros colegas da Escola Técnica de Aviação e garantiu o emprego. Como não tinha onde morar, acabou aceitando o convite de Alypio e se alojou em uma sala do observatório. Mas não foi algo provisório. "Morei aqui por 20 anos", diz. Coincidência ou não, seu quarto era exatamente a sala de dez metros quadrados que ele ocupa hoje, no instituto. Preocupado com o futuro, Paulo decidiu retomar os estudos. Na década de 50, graduou-se em Física na Universidade de São Paulo (USP). "Não era o curso que eu queria, mas o que tinha mais a ver com minhas predileções." Demorou sete anos para se formar. Estudava de dia na Rua Maria Antonia, Vila Buarque. À noite, era o responsável pelas medições meteorológicas da estação. Com a formação acadêmica, o meteorologista seguiu o caminho natural de quem trabalha em um instituto vinculado à USP - o IAG foi encampado pela universidade em 1946. Nos anos 70, começou a lecionar. Seu tempo então passou a ser dividido entre medições de pressão do ar, temperatura, umidade, velocidade do vento etc., e a sala de aula. Paulo se considera pai de três filhos: o casal fruto de sua união com a médica Volga Ide, com quem se casou aos 41 anos, e a meteorologia da USP. "Se eu não tivesse insistido nesse assunto, o curso não teria sido criado, como foi, em 1977." Mais uma leve e sincera gargalhada. CADÊ A GAROA? Ao longo da carreira, Paulo viu a meteorologia e o tempo paulistano mudarem. Ela, para melhor. Ele, para pior. "Antes errava-se bem mais que hoje nas previsões." Para o meteorologista, o principal avanço foi o uso de satélites. "Até 1967, as previsões eram feitas a partir de análises das medições feitas pelas estações ao redor do mundo. Elas se comunicavam via rádio, a cada seis horas." E por que São Paulo não é mais a terra da garoa? "O fenômeno continua existindo, mas no centro da cidade a ilha de calor faz com ela evapore antes mesmo de estar em uma altura visível." Reflexos do crescimento urbano. O árido concreto, os gigantes prédios arranhando o céu e atrapalhando os ventos... "A temperatura média da cidade é, hoje, uns 2 ou 3°C maior do que a daqui da estação", compara. Em 2005, o meteorologista lançou pela Edusp o livro Instituto Astronômico e Geofísico da USP - Memória Sobre sua Formação e Evolução. Escrever a história da instituição à qual dedicou seis décadas de trabalho é contar um pouco da sua própria vida. A obra lhe rendeu boas lembranças e o Prêmio Clio de História, outorgado pela Academia Paulistana de História. "Preciso buscar esse diploma, que até agora a editora não me mandou." Faz 60 anos que Paulo começou a trabalhar na Estação Meteorológica. Há 40, ele não mora mais lá. Hoje vive em um apartamento no Jardim Paulista, com a mulher. Aposentado desde 1997, continua dando expediente diário na estação, das 11 às 18 horas. "Enquanto houver o que fazer, virei. Melhor do que ficar à toa." Segundo seus colegas, raramente falta. É tão caxias que, em caso de imprevisto, liga para avisar. "Faço certinho. Tenho até férias." Não ganha nada por isso - conta apenas com uma boa aposentadoria. "Ao contrário, gasto combustível para vir." Ele mesmo dirige seu Chevette 93 prata. No dia 18, Paulo completou 81 anos. Avesso a comemorações, encarou um dia de trabalho normal - apesar de ter sido interrompido, ao longo do dia, pelos cumprimentos de colegas. Deve ter soltado várias gargalhadas. Simpáticas gargalhadas do senhor do tempo, para quem o tempo também passa. O tempo, aliás, lhe sorri.

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