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O soldado João Maria Figueiredo queria mudança, mas acabou assassinado

Crítico da forma de atuação ‘arcaica’ da corporação, o agente da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, morto em dezembro de 2018, angariou inimigos e ameaças. Sua história, porém, mostra Figueiredo como defensor de melhorias para a categoria

Foto do author Marco Antônio Carvalho
Por Marco Antônio Carvalho
Atualização:

SÃO PAULO E NATAL - Corria o ano de 2011 quando o soldado João Maria Figueiredo foi chamado para atender uma ocorrência numa praia vizinha à que atuava, no litoral norte do Rio Grande do Norte. Uma briga por uma vaga de estacionamento em um restaurante acabou com o policial como a maior vítima daquele dia. Ao não conseguir parar o carro na vaga privativa de um restaurante, uma mulher não poupou Figueiredo. Quem viu disse que o xingamento mais leve foi de corrupto, sob acusação de que ele teria recebido dinheiro para proteger o dono do estabelecimento. Inconformada, não demorou para chamá-lo de macaco.

Soldado foi morto a tiros em 21 de dezembro de 2018, aos 36 anos Foto: RAYANE MAINARA /ESTADAO

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O soldado negro tinha dois anos na corporação, mas há muito já tinha por óbvio a gravidade da situação de racismo em que estava envolvido. A justiça que desejava para o caso viu rapidamente ser abafada. Os superiores, segundo ele contou a amigos, achavam que era melhor encerrar a situação do jeito que começou: rapidamente. Ainda mais dado o status da família em questão, bem conhecida na localidade. Engoliu seco, mas não esqueceu. 

Encontrei Figueiredo pela primeira vez em janeiro de 2012, pouco tempo depois do caso. Eu fazia uma reportagem sobre a estrutura de segurança nas praias do litoral potiguar, que sofriam com crescentes casos de assaltos, quando, na frente da sede da companhia da PM, ele me puxou de canto para reclamar. Registra a matéria publicada no jornal da época que ele me disse o seguinte: “A segurança é feita de faz de conta. De que adianta mandar homens e não oferecer a eles a estrutura adequada para a realização do trabalho? Mandaram os homens e se esqueceram das condições”. 

Eu só entenderia tempos depois que a reclamação era sua marca maior. A declaração que me deu naquele dia se encaixava num contexto específico sobre a segurança de uma cidade muito pequena, mas de um jeito ou de outro eu voltaria a escutar a mesma reivindicação repetidas vezes vinda dele até o fim de 2018. A carência da estrutura ficou mais visível ao longo da última década diante do recrudescimento da violência, o que levou o Rio Grande do Norte a ser considerado o Estado mais violento do País em 2017, com 68 assassinatos por 100 mil habitantes. Após o pico, o número tem apresentado queda de 2018 para cá. 

Repensar a forma de atuação da polícia e cobrar melhor estrutura para o exercício da profissão definem a carreira de Figueiredo. Ainda assim, quando o soldado foi morto a tiros em 21 de dezembro de 2018, aos 36 anos, houve quem comemorasse, entre eles colegas policiais. 

Infância pobre e ‘campo de batalhas’ na polícia

Quem o conheceu de perto o define como afrontoso e gentil, carismático e chato, sem que isso seja um paradoxo. Antes de adotar o nome de guerra de Figueiredo, o qual não simpatizava no começo, para os amigos ele era só João. O garoto pobre do bairro do Igapó, na zona norte de Natal, gostava de jogar bola. Com 13 anos, a Igreja Evangélica, que havia começado a frequentar, lhe pareceu uma má ideia, não por uma questão religiosa. É que ao chegar em casa após o culto não encontrou o jantar e não adiantou chorar para reavê-lo porque a comida já havia sido dividida e nada mais restava. Foi dormir com fome. 

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Cabo Juciê Geraldo de Lima, de 37 anos, relembra infância com Figueiredo Foto: Rayane Mainara/Estadão

A dificuldade ele aprendeu rápido a conviver e principalmente a superar, contam amigos da época. Para entrar num curso do então Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), hoje Instituto Federal (IFRN), ele procurou ajuda de um vereador e organizou em uma garagem aulas de Matemática para um grupo de amigos. O pacote acabou incluindo muito mais que álgebra e trigonometria. Nos intervalos, o tema era política. Ali, adquiriu uma vertente contestadora que o levaria ao movimento estudantil e a movimentos sociais, e o acompanharia até o fim da vida. 

A opção pelo concurso para a PM veio em 2005 impulsionada pela mobilização do grupo de amigos. A aprovação ocorreu, mas a convocação só se efetivaria quatro anos depois. “Não era o sonho dele ser policial, assim como também não era o meu, para ser sincero. Mas depois que ele entrou, abraçou totalmente a causa”, lembra o cabo Juciê Geraldo de Lima, de 37 anos, amigo de infância de Figueiredo.

O soldado Wendel Wagner Lima da Silva, de 37 anos, começou a trabalhar com Figueiredo em 2010, em um pelotão do interior do Estado. As principais marcas do colega eram uma personalidade forte e uma atuação proativa. Ali, uma das questões que se tornou alvo mais frequente das reclamações era a alimentação da tropa. Pode parecer pequeno, pontua Silva, mas era sobre a dignidade por trás de um prato de comida e o que aquilo representava politicamente. 

Figueiredo, lembra Lima, não queria que a categoria fosse refém da alimentação fornecida por um prefeito, político ou empresário local, o que depois poderia ser cobrada em forma de uma patrulha reforçada em determinada área da cidade - em detrimento de outras. A luta era por um vale-alimentação, como o que recebia o agente que atuava na capital. “Ele ficava indignado”, diz Lima. A indignação era comum e mirava dos coletes balísticos vencidos ao abastecimento das viaturas. Mas principalmente mirava os salários. 

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O ingresso na Polícia Militar levou a um choque que, para quem conhecia Figueiredo e a corporação, poderia ser considerado previsível. “Toda a bagagem de contestação dele encontrou o círculo mais arcaico e conservador do Estado. Era o campo ideal para travar as suas batalhas”, conta o policial civil Pedro Paulo Chaves Matos, de 32 anos. 

Matos diz que foi Figueiredo quem o pescou para um movimento cujo objetivo era discutir a atividade policial de forma mais ampla visando a repensar a profissão e questionar os riscos do cotidiano. Na pauta do grupo estava, entre outros temas, a discussão sobre a chamada guerra às drogas, modelo de combate violento ao tráfico como forma de diminuir o consumo e a venda, que começou a ser fomentado pelos Estados Unidos em todo o Ocidente desde os anos 1970. 

Para Matos, todo o conceito que leva os policiais à linha de frente de um combate com traficantes precisa ser revisto. “De um lado você joga os policiais e de outro, as facções. Mas o que seria exatamente vencer essa guerra? É algo que não tem fim, mas que continua vitimando policiais todos os dias.” Esse questionamento fazia parte do cotidiano de Figueiredo. Para os pares na corporação, por outro lado, o questionamento era encarado necessariamente como defender bandido.

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‘Marielle foi vítima, amanhã pode ser eu’, disse soldado meses antes da sua morte

No carro alugado que fazia o trajeto de mais de mil quilômetros entre Natal e Salvador em março de 2018 estavam Figueiredo e o cabo Dalchen Viena do Nascimento Ferreira, de 33 anos, além de várias ideias. A principal delas era a expansão de um grupo que foi denominado inicialmente como policiais pensadores. Em Salvador, ocorreria nos dias seguintes o Fórum Social Mundial, de onde esperavam colher a motivação e o método para ampliar o debate em torno da atividade policial.

Dalchen se recorda da grande empolgação por parte de Figueiredo em participar do evento. Em uma das mesas, intitulada "violação de direitos humanos dentro de instituições policiais", Figueiredo falou por cerca de 15 minutos. Lá, recordou-se de quando foi ordenada contra ele, pelo Comando da PM potiguar, uma pena de 15 dias de prisão administrativa após um comentário feito no Facebook. 

O soldado havia respondido a um questionamento de uma iniciativa que visava a avaliar e reformar práticas policiais. Na página, comentou: “Esse Estado policialesco não serve nem ao povo e muito menos aos policiais que também compõem uma parcela significativa de vítimas do atual contrato social brasileiro. Temos uma polícia que se assemelha a jagunços, reflexo de uma sociedade hipócrita, imbecil e desonesta”.

Não foi a primeira pena de prisão administrativa que sofreu. Em outra oportunidade, lembrou no mesmo evento, foi preso após questionar o comandante sobre regalias no tratamento de um preso, que ficava fora da cela. Foi parar ele mesmo dentro de uma. Ao reclamar, costumava receber de volta, com sorte, indiferença ou, com azar, sanções disciplinares. 

Ele falava no evento um dia após o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio. “Eles tentaram dar uma prova de força, tentam nos calar a todo custo. Ela (Marielle) foi vítima, mas já teve a Dorothy (Stang, religiosa americana morta em 2005 no Pará), já teve tantos outros. Amanhã pode ser eu. Mas quando eliminam uma pessoa, eles fazem nascer várias outras porque aquilo ecoa e o poder do exemplo é muito forte.”

A viagem de volta foi marcada pelo planejamento de fortalecimento do grupo como braço de um movimento nacional de policiais antifascismo. O objetivo, lembra Dalchen, era ir além de um debate raso sobre investimento em armamento e aumento de efetivo. “O movimento luta pelo reconhecimento dos policiais como uma categoria de trabalhadores, não de heróis. Acreditamos no caminho da humanização do agente e da democratização da segurança. Hoje, a sociedade não quer estar perto do policial.”

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Essa rejeição Figueiredo voltou a sentir quando, de volta ao Rio Grande do Norte, decidiu perseguir um veículo que trafegava em alta velocidade em uma estrada do interior. A viatura alcançou o veículo, dirigido pelo presidente da câmara municipal de uma cidade próxima. 

A reação do político à abordagem não foi boa. Mas, diferentemente do que tinha acontecido na praia quando a mulher o xingou em uma briga pela vaga de estacionamento, o soldado levou a ocorrência até o fim, apresentando o caso na delegacia. “Pediram a nossa cabeça”, relembra Wendel Silva, que trabalhava com Figueiredo na época. 

Ele diz que os dois casos - o da praia e o do vereador - simbolizam uma mudança de Figueiredo. “No primeiro caso, ele tinha uma visão mais rudimentar de como poderia lidar com o sistema. No segundo caso, ele não se permitiu ser aliciado por nenhuma interferência externa e levou o caso até o fim”, conta. “Algumas pessoas não gostam de ser abordadas, mas querem que a polícia aborde o outro e o trate como inimigo, agindo da forma mais áspera possível.” 

A atitude do policial em relação ao cidadão é algo que o cabo Juciê Lima pensa mais frequência recentemente, muito motivado pelas provocações do colega soldado. A polícia só tem a perder com a desconfiança da sociedade, sustenta ele. Ainda assim, não há esforço estruturado para mudar o comportamento e levar a uma reaproximação. “Quando entrei na polícia em 2006 recebia muito a ajuda das pessoas nas ruas, como quando nos davam informações básicas. Mas hoje as pessoas estão se distanciando da corporação, o que me deixa muito triste. Perdi a ilusão de que posso fazer a diferença.” 

O assassinato e o segundo assassinato

No dia 21 de dezembro de 2018, Figueiredo acordou feliz e ficou brincando com a sua cachorra, para quem teve de comprar ração no início da tarde. A felicidade em parte podia ser explicada pela aproximação da data da posse da governadora Fátima Bezerra (PT), para quem havia trabalhado como segurança na campanha eleitoral. Com a vitória, deixaria o batalhão do interior para trabalhar na sede do governo na capital. No fim da tarde daquele dia, combinou com um amigo de caminhar em uma área de lazer. Saiu de casa às 16h49.

Sandra diz que Figueiredo queria seguir carreira na área do Direito Foto: RAYANE MAINARA /ESTADAO

A contadora Sandra Cristina Freitas Amaral, de 47 anos, achou estranho quando no início da noite uma amiga ligou perguntando sobre o seu companheiro. “Ela me disse: Sandra, João morreu. Comecei a gritar”, relembra ela. 

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A notícia se espalhou de uma forma imprecisa naquela noite. Seria confirmado horas depois que o corpo caído atingido por tiros à margem de uma estrada em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal, onde o casal morava, era de fato de Figueiredo. De moto, ele fazia o trajeto entre a sua casa e a área de lazer, quando foi abordado e morto. Fugiram com a sua arma.

Ele queria seguir carreira na área do Direito, diz Sandra, e já tinha se formado no curso. Queria, quem sabe, ser promotor ou juiz para fazer mais do que já fazia, acrescenta ela. Amigos sugeriam pouco antes da sua morte que ele iniciasse carreira na política. 

A Polícia Civil programava para o mês passado encerramento do inquérito para enviá-lo à Justiça. Como responsáveis pelo assassinato, aponta um homem (que está preso) um adolescente (que foi apreendido, mas que mês passado fugiu do centro de internação) e uma outra pessoa (que já morreu). Os maiores elementos para chegar a essa conclusão vem de uma confissão feita pelo adolescente. 

“O menor confessa. Fala que foram para roubar a arma e sabiam que era policial militar que sempre passava por ali”, conta a delegada Jamille Ribeiro, da delegacia de homicídios. “O que temos é suficiente para uma condenação.” 

O latrocínio praticado contra um policial leva a delegada a refletir, ao seu modo, sobre o fim do respeito aos policiais. “A polícia sempre foi muito respeitada, mas infelizmente os vagabundos agora estão cheios de direito e não têm mais medo de ninguém. Mata, rouba, faz o que quer e fica solto. A vida perdeu o valor.” 

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Figueiredo foi um dos 25 policiais assassinados em 2018 no Rio Grande do Norte. A taxa de 2,5 mortes a cada mil policiais da ativa coloca o Estado como segundo mais perigoso para os agentes em todo o País, atrás do Pará com taxa de 2,9 e à frente do Rio, por exemplo, que tem taxa de 1,6. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social potiguar não respondeu a perguntas da reportagem sobre o cenário atual da violência no Estado e os ataques a policiais. 

O delegado da Polícia Civil do Rio Orlando Zaccone, coordenador nacional do Movimento Policiais Antifascismo e referência em movimentos formados por policiais no País,  vê como urgente a discussão sobre a morte de agentes no Brasil. Ele diz que o policial não pode achar que sua função é matar e que faz parte morrer. “João não morreu em confronto, fardado. Isso tem relação com uma letalidade policial alimentando a letalidade contra o policial, o que demonstra que se o Estado quiser agir na forma do crime, o crime vai dar continuidade a esse comportamento”, explica. 

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Os colegas policiais tentaram acompanhar a investigação de perto e contestam a robustez da investigação, já que a arma roubada não foi encontrada e não há muitos outros elementos além da confissão do jovem. Pediram e a polícia investigou a possibilidade de o assassinato ter sido uma execução por motivos políticos, dada a atuação de Figueiredo. Apesar de ter sido ameaçado, não foram encontrados indícios que virasse a investigação nesse sentido. 

O amigo Dalchen diz ter ficado chocado com o que chama de segunda execução de Figueiredo. “Foi um escracho. Foram feitos 'memes' por policiais dizendo que ele seria bem recebido no inferno. Isso é de uma desumanidade fora do comum.” Ele lamenta a inversão de valores sofrida pelo soldado: “Pensar fora estritamente do que determina a corporação é visto como um sinal de traição por muitos. Ele era um profissional operacional, um policial honesto e trabalhador que lutava por mais direitos para os próprios policiais. E por isso era muito hostilizado.”

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