O suspeito

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Há uns três anos, resolvi um dia fotografar a bela escadaria que desce da esquina da Rua Frei Caneca com a Rua Caio Prado para a Av. 9 de Julho. Morei ali perto, nos anos 60, quando começava a dar aulas na Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia. Sempre gostei daquele canto, com sua paineira florida e a escadaria ornamental em patamares. É hoje um recanto maltratado. A construção de uma mureta de contenção das águas das enxurradas, que descem pela Rua Frei Caneca em dias de chuva, criou uma espécie de abrigo para os que decidem dormir na calçada ou, mais frequentemente, usá-la como privada. Como meu dentista tinha consultório ali perto, numa das vezes em que lá fui, levei comigo minha câmera e comecei a fotografar a escadaria. Em poucos minutos uma viatura da Polícia Militar parou ao meu lado, desceram uma soldada e um soldado. Num átimo os dois estavam bem ao meu lado, demasiado perto. A policial foi logo perguntando se eu tinha visto passar por ali um homem com um cobertor na cabeça. Achei estranho e disse-lhe que não. E continuei fotografando. Ela insistiu em descrever o ente imaginário para saber se eu o havia visto. Fui fotografando e respondendo. - O senhor é fotógrafo? - perguntou-me ela para chegar ao finalmente. - Não, não sou - respondi, clicando e escolhendo trechos da escadaria que queria documentar. - Não é?! O que o senhor faz, então? - Trabalho - esclareci. - Sou professor. - Ah, é?! Professor de que? - Sou professor de Sociologia. - Onde? - Na USP. - Na USP?! - a surpresa fingida sugeria desculpa de malandro. - Que chique, heim? Só então resolvi parar de fotografar para encarar o fato óbvio de que eu estava sendo interrogado porque fotografava um canto da cidade e era suspeito. - Chique, por quê?! - perguntei-lhe eu, surpreso com a estranha avaliação da Universidade. Não há nada de chique em ser professor na USP - esclareci. É honroso, sem dúvida. Custou-me muitos anos de estudo e trabalho, de concursos exigentes, de dedicação integral ao ensino e à pesquisa, jornadas muito além das 8 horas do contrato, as leituras e estudos entrando pela noite, os fins de semana devotados à redação de artigos e livros. É recompensadoramente cansativo, apesar do salário, que não corresponde nem à seriedade nem à intensidade do trabalho intelectual. - Ah, é? O senhor pode me mostrar a sua carteira de identidade? - É claro que minha condição de sociólogo e de professor da USP não estão anotados no meu RG. Mostrei-lhe a carteira e seu colega, motorista da viatura, tratou de anotar meus dados na folha pregada a uma prancheta, que apanhou no carro, mais meu endereço e tudo o mais que me dissesse que estavam de olho em mim. - Tome cuidado! - arrematou ela, entrando na viatura - Este lugar é muito perigoso. Meti a câmera no coldre e bati em retirada.

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