ONU critica Brasil por discriminar ciganos

Relatório fala de acampamentos precários em 21 Estados; em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, vive-se de ‘gatos’

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Por Luiz Fernando Toledo e Jamil Chade
Atualização:

GENEBRA E ITAQUAQUECETUBA - Os ciganos no Brasil enfrentam discriminação, principalmente no que se refere ao acesso à educação. O alerta foi feito por Rita Izsák, relatora especial sobre o Direito de Minorias da Organização das Nações Unidas (ONU), que critica a situação em acampamentos do País. “Muitos não têm eletricidade, água potável e saneamento, apesar de famílias viverem ali por mais de 20 anos”, diz a entidade em relatório oficial.

Segundo a ONU, cerca de 500 mil ciganos vivem no Brasil, mas o próprio governo admite que os dados sobre essa parcela da população são “incipientes”. Uma das únicas referências é a da Associação Internacional Maylê Sara Kali (AMSK), que analisou os dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2011 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e constatou que existem no Brasil 291 municípios com acampamentos ciganos, em 21 Estados. As maiores concentrações estão em Minas Gerais (58), Bahia (53) e Goiás (38). Desses 291 municípios, 40 afirmaram desenvolver políticas públicas para povos ciganos. 

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De acordo com o levantamento divulgado pelo Comitê de Direitos Humanos e pelo Comitê de Eliminação da Discriminação Racial da ONU, há uma generalização dos casos de discriminação, “incluindo casos de racismo e da não aplicação da lei nacional correspondente, nos casos em que as vítimas são ciganas”.

Outra preocupação apontada pelo relatório é a dificuldade de acesso à escola e a alta taxa de analfabetismo. “O preconceito é um obstáculo para o ingresso em escolas públicas”, indicou o informe. A ONU destaca ainda que, nos últimos dez anos, pouco mudou a situação dessa população no que se refere à educação, apesar de iniciativas pontuais de governo. 

Testemunho. “As pessoas só querem saber de amores e de morte”, conta a cigana e vidente Simone Bulhões, de 32 anos. Ela lê as mãos de quem passa na Sé e no Brás, na região central de São Paulo, a troco “do que podem pagar”.

Mora com o marido, que trabalha como camelô, e duas filhas, uma de 6 e outra de 13 anos. Dividem um barraco colorido, com cortinas azuis na entrada, tapetes e decoração por toda a parte, em um terreno invadido há mais de 20 anos em Itaquaquecetuba, região metropolitana de São Paulo. O acampamento é da etnia Calon, a que tem mais representantes no País.

Com o dinheiro que recebem, pagam água e luz, ambos puxados em forma de “gato” de um comércio próximo. Pelo “empréstimo” dos insumos, pagam R$ 100 por mês. Fios elétricos e longas mangueiras são comuns não só no barraco de Simone, mas nos de toda a comunidade. A estrutura dos barracos do acampamento é precária: não há saneamento básico no local e todas as instalações são improvisadas. O mato é alto em todo o terreno e, quando chove, formam-se poças d’água em todo o perímetro do local. E banheiro? “A gente faz no mato mesmo”, revelou Simone.

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Tradições. “Cigano é que nem polícia, todo mundo tem medo”, disse a dona de casa Rosimar Moreira, de 35 anos. A filha mais velha, Lindaiara, de 17, deixou os livros no ano passado, analfabeta como a mãe. A jovem engravidou de um rapaz da comunidade, de 18 anos. Casou-se e agora moram no barraco ao lado do da mãe. O enlace foi combinado antes mesmo de os noivos terem se conhecido. “Descubro o marido depois que casei. É da nossa tradição”, contou. 

Algumas tradições não se perdem. Simone, assim como as filhas, veste saias longas. Outros costumes, no entanto, não são restritos ao Calon. A filha Jussara, de 13 anos, por exemplo, vê novela – em TV de 42 polegadas – e ouve sertanejo universitário. “Ser cigana é ser livre”, disse a menina, que como os familiares divide a rotina entre acampamento, afazeres domésticos e viagens pelo Brasil.

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