Para superar a crise, Mangueira quer ganhar o Rio e sonha com SP

Presidente da Verde-e-Rosa, Chininha já cogita colocar um pé na capital paulista após show no começo do ano

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Por Carlos Marchi
Atualização:

Nas veias de Chininha corre sangue azul. Neta do fundador Saturnino Gonçalves, filha de dona Neuma e agora presidente do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, um dos ícones da cultura brasileira, Eli Gonçalves da Silva está se sentindo, mais que presidente, a rainha da escola mais querida. Há 59 anos, ela evolui nas quadras e na avenida como figurante mirim, cabrocha, diretora de ala. Amanhã de madrugada, como personagem mais importante da escola, virá sozinha, logo atrás da comissão de frente, atraindo os olhares dos que torcem pela vitória da Mangueira e dos que se indagam se a crise enfrentada pela escola foi superada. Chininha veio a São Paulo há duas semanas para comandar o já tradicional show que a Verde-e-Rosa promove aqui todo ano, duas semanas antes do carnaval. Lá, se encantou com os 2.400 paulistas enlouquecidos com a bateria da Mangueira e, principalmente, com os surpreendentes R$ 300 mil arrecadados na festa. Tudo isso cravou uma pergunta na curiosidade de Chininha: por que a Mangueira não coloca um pé em São Paulo? - indagaram-se ela, Álvaro Luiz Caetano, (o Alvinho, que já foi presidente) e o diretor Paulo Barros, que hoje formam o triunvirato que, na crise, segura as rédeas da Mangueira. Os três deixaram São Paulo pensando em ampliar a presença da escola na cidade. Mas antes disso eles têm de superar um dilema. Chininha não merecia chegar à presidência da Mangueira por causa de uma crise, mas - com seu sangue azul e o respeito que cultiva - só ela poderia assumir a escola apenas dois meses antes do carnaval. Pela primeira vez, o nome da Mangueira foi vinculado ao crime organizado. Em princípio de dezembro, o então presidente Percival Pires, o Perci, renunciou quando se revelou que ele esteve numa festa para comemorar o casamento de Luiz Fernando da Costa, ninguém menos que Fernandinho Beira-Mar. Perci foi, levou um grupo de show da Mangueira e discursou, elogiando o casal (Beira-Mar, preso, não estava, claro). Depois, tentou explicar o inexplicável - não sabia que o Luiz Fernando do casório era o Beira-Mar. Mas aí já não havia explicação que bastasse. Chininha reconhece que foi grave, mas ameniza: "Perci adora falar. Tem um microfone, ele não pára mais." TRADIÇÃO NO COMANDO A solução foi adequada. Depois da suspeita incômoda, Chininha representa a tradição no comando da Mangueira e a retomada da tranqüilidade. Existem traficantes no morro, e não é de hoje, ela admite. Alguns vão à quadra de ensaios. "Eu não sou polícia", defende-se. "Não vou dedurar pessoas do morro. Já faço muito dirigindo a escola", diz, recitando toda a estrutura que hoje é a Mangueira, muito além do carnaval, inclusive a Mangueira do Amanhã, a escola dos meninos. Lembra que as principais alas - velha guarda, baianas, bateria, compositores - são compostas por gente da comunidade, cujas fantasias são custeadas pela escola. Nas outras alas, pelo menos 30% são pessoas da comunidade, para sustentar o samba na avenida, garantir a evolução e equilibrar o conjunto. Mas a escola, apesar de manter suas tradições, nunca dependeu de bicheiros, recorda. O problema é que não foi só a homenagem a Beira-Mar: Francisco do Pagode, um dos autores do samba-enredo deste ano, é Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, apontado como líder do tráfico no morro. Os dois casos juntos viram dose para leão, mas Chininha protesta e lembra que a Mangueira é sempre mais visada e cobrada pela mídia. Cabelos embranquecidos cortados rente, como dona Neuma, fala mansa, ela se mostra visivelmente desconfortável em ambientes sofisticados. Mas, no palco de uma casa de shows paulista, evoluiu como uma cabrocha serelepe que aprendeu a sambar aos 3 anos e desfilou pela primeira vez aos 5. "Quando era pequena", conta, "a gente não saía com minha mãe para ir à igreja, como acontece na maioria das famílias. Quando a gente saía, era para ir ao samba." A quadra da Mangueira era a única diversão no morro. Quando tinha 9 anos, o Juizado de Menores resolveu proibir que os menores de 15 desfilassem. Ninguém acreditou que a lei funcionaria, mas, na hora do desfile, no tablado da Praça Onze, no centro do Rio, o Juizado apareceu com a polícia e recolheu as crianças na armação da escola. Alguns se esconderam debaixo das saias das baianas, conta Chininha, mas ela foi levada para um carro da polícia - e de lá para casa, chorando copiosamente, no único desfile da Mangueira a que faltou, desde 1949. Aos 18 anos, foi Miss Cerâmica: ganhou a disputa interna de beleza na Companhia Cerâmica Brasileira (CCB), a fábrica da família Ludolf que ficava ao lado do Buraco Quente e dava emprego para o morro inteiro. Quando a cerâmica fechou, em 1984, o morro ficou órfão de trabalho - e isso aconteceu justamente na época em que o crime organizado começou sua incontrolável expansão no Rio. CABROCHA DE TRADIÇÃO A lembrança da CCB, que divide a história com a Mangueira, é nostálgica. Todos os dias, a caminho da fábrica, via "seu Cartola" (ela não consegue dizer simplesmente Cartola) no bar da dona Efigênia ou no boteco Pára Quem Pode. Quando voltava, seu Cartola ainda estava lá, dedilhando o violão e cantarolando maravilhas. E ainda ficaria muito mais: aquele encontro certamente se repetiria pelos três dias seguintes, porque, quando sentava num boteco, seu Cartola não ficava horas - ficava dias produzindo obras-primas, enquanto bebia quantidades industriais de cerveja. Ela nasceu no morro e foi criada na sede mundial do samba. Em sua casa, era comum se reunirem, em volta de dona Neuma, os mitos da Mangueira - seu Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Zagaia, Candeia, Padeirinho. Hoje, comanda uma mística que arrasta multidões, do porte de Flamengo ou Corinthians. Nem por isso se assusta: acha que vai carimbar sua passagem pela presidência com o campeonato do Grupo Especial. Como sempre, ela promete uma "grande surpresa visual" no desfile da Mangueira, amanhã, de madrugada. Não diz o que é nem sob tortura. As firulas da bateria - que transformariam a batida do samba em frevo - foram abandonadas. Sozinha, lá na frente da escola, em vez da rabeira na qual sempre saiu, Chininha contará com a força da tradição para reinstalar na Mangueira aquele velho cenário que, segundo cantam, nunca deixou de ser uma beleza.

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